terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

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A Terapia Comunitária Integrativa "é um espaço comunitário onde se procura partilhar experiências de vida e sabedorias de forma horizontal e circular. Cada um torna-se terapeuta de si mesmo, a partir da escuta das histórias de vida que ali são relatadas. Todos tornam-se co-responsáveis na busca de soluções e superação dos desafios do cotidiano, em um ambiente acolhedor e caloroso".Adalberto Barreto



domingo, 9 de fevereiro de 2014

ARTIGO ADALBERTO BARRETO - AS DORES DA ALMA DOS EXCLUIDOS NO BRASIL


 
 
As dores da alma dos excluídos no Brasil

(Adalberto de Paula Barreto)

 

O Contexto de nossa ação:

 
Assim como muitos países do mundo recebem refugiados de guerra, as grandes cidades do Brasil recebem refugiados que fogem de uma luta desigual contra as forças da natureza, no árido sertão nordestino e vitimados por uma política econômica que concentra poder e riqueza, excluindo a grande maioria das oportunidades de desenvolvimento e da partilha de bens materiais ou culturais.

Os movimentos migratórios, agravados pelas secas cíclicas, pela interrupção e vulnerabilidade das políticas agrícolas provocam o empobrecimento econômico, cultural, do “savoir -faire” e dos laços sociais e da imagem de si mesmo. Estes migrantes são personagens de uma batalha silenciosa, invisível fruto da política econômica injusta e excludente. Essa batalha, sem armas aparentes, deixa marcas profundas no corpo e na alma do homem. A chegada às grandes cidades acontece na mais profunda desolação. A cidade não os acolhe, não abre suas portas para recebê-los. Eles chegam, mas não a penetram, permanecem na periferia formando um cinturão de miséria.

Logo descobrem que os sonhos tornam-se pesadelos. Inicia outra série de problemas bem mais dramáticos: onde morar? Como construir casa se não há terra nem meios? Como alimentar e nutrir seus filhos? Como conseguir emprego, se não têm capacitação profissional? Como cuidar dos filhos, se precisam sair de casa á busca de trabalho e comida? Essas questões ilustram a “via cruxis” de indivíduos e famílias no quotidiano. São populações abandonadas pelos governantes, denegadas por uma economia selvagem que as excluem literalmente da partilha.


Para poderem se inserir na grande cidade têm que romper com barreiras invisíveis, verdadeiras muralhas de indiferença, hostilidade que tentam manter essas populações afastadas da vida social. Neste contexto profundamente diferente, a nova vida social e política e as atividades econômicas, por um lado, funcionam como elementos que agridem a identidade cultural e atingem a identidade pessoal provocando desagregações, desajustes e desequilíbrios. Por outro lado, desencadeiam um esforço criativo e desejo de inserção social muito grandes, por meio de inúmeros cultos religiosos ou movimentos associativos. A conseqüência imediata dessa exclusão é a cisão da sociedade em duas grandes correntes humanas:

 a) uma, fixada na terra com seus imóveis e mansões bem protegidas, ostentando riquezas e bens visíveis;

b) outra, como fantasmas semivisíveis que ninguém quer ver, perambula de lá para cá, dentro do espaço urbano, movendo-se impulsionada pelas necessidades básicas, em busca de alimento, moradia, emprego constituindo-se na sociedade dos descolados sociais, ou das “almas penadas”.

 

Na cultura brasileira o termo “alma penada” define a situação de pessoas que morrem e não têm para aonde ir, que não conseguem seguir o destino de todas as almas após a morte, e vagam entre os vivos, sofrendo e gemendo entre a terra e o mundo espiritual. São as almas penadas, que tentam, sem sucesso, o contato, o diálogo com o mundo dos vivos (Barreto 1994).

Durante estes anos de trabalho com essas populações, nós podemos compreender o drama do homem das favelas das grandes cidades brasileiras. Ser migrante favelado é algo tão angustiante, tão frustrante quanto ser “alma penada” buscando contato com os vivos, sem jamais conseguir ser visto ou ouvido.

Talvez a familiaridade do termo junto às classes pobres traduza o real sentimento de uma vida sem reconhecimento e sem direito a espaços que garantam o desenvolver pleno da existência como pessoas, como cidadãos. A alma penada seria o protótipo das doenças da alma do século XXI?

Nossa intervenção:

 Há 21 anos, o Departamento de Saúde comunitária da Universidade Federal do Ceará, com o apoio do Centro de Direitos Humanos do Pirambú - CE. e do Movimento Integrado de Saúde Mental Comunitária, desenvolve um trabalho de promoção em Saúde Mental Comunitária, na segunda maior favela do Brasil, a favela do Pirambú, com 280.000 habitantes, situada na cidade de Fortaleza, nordeste do Brasil, metrópole com dois milhões de habitantes.

 A ação da Universidade, no início, era voltada para as intervenções pontuais de indivíduos e famílias em sofrimento psíquico, cujos direitos de cidadãos tinham sido violados. Convidado a intervir como psiquiatra na favela, me dei conta de que o arsenal quimioterápico da psiquiatria moderna não podia ser a única arma na luta contra os efeitos de um contexto social desagregador e mutilador de indivíduos.

O uso indiscriminado tornava ainda mais caótico o estado psíquico de muitos usuários e os mesmos psicotrópicos usados para tratar distúrbios mentais eram usados indiscriminadamente nas insônias rebeldes e nos desequilíbrios emocionais ou até para aplacar o choro das crianças famintas. Esse contexto caótico exigia a criação de novos paradigmas capazes de estimular uma ação terapêutica criativa e efetiva, que nos permitisse:

 1. Perceber o homem e seu sofrimento em rede relacional;

 2. Romper com o modelo do “salvador da pátria”, do técnico iluminado, que traz as soluções e reforça um sistema de dependência;

3. Identificar não só a extensão da patologia, mas também o potencial daquele que sofre;

4. Como fazer o grupo acreditar em si, na sua competência;

5. Como resgatar o saber dos antepassados e a competência adquirida pela própria experiência de vida;

6. Como ultrapasssar o unitário para atingir o comunitário;

 7. Fazer da prevenção, uma preocupação constante e tarefa de todos;

 Para atuar de forma transformadora nesta dura realidade social, começamos a realizar encontros semanais entre as pessoas mais carentes de auxílio psiquiátrico, na favela, e acabamos criando nossa própria forma de trabalho, a Terapia Comunitária (Barreto 1994).

Em espaço livre, à sombra de um pé de cajueiro, reuniam-se as pessoas que estavam vivendo uma situação de crise para falar de suas angústias, problemas, sonhos, dramas e necessidades. Criamos então o Movimento Integrado de Saúde Mental Comunitária, Organização Não Governamental, sem fins lucrativos e com base comunitária, que passou a oferecer, ao longo de 18 anos de trabalho, algumas opções terapêuticas à população: arte terapia – massagem anti-estresse, fitoterapias - Terapias comunitárias, sessões de resgate da auto-estima (Barreto 1994). Nossa ação procurava suscitar a capacidade terapêutica do próprio grupo ajudando o indivíduo a descobrir as implicações humanas e contextuais do quadro de sofrimento em que viviam.

Desta forma, nossa intervenção permitia a tomada de consciência do indivíduo em sofrimento psíquico dentro do corpo social, estimulando a transformação de um e de outro, tratando assim a saúde coletiva, e recuperando, com ações individuais, a saúde do corpo social.

Nesses anos de trabalho como psiquiatra, na favela, temos treinado cerca de 7.500 lideranças comunitárias que atuam em 27 estados do Brasil para assumirem o papel de mediadores dos conflitos, conhecidos como terapeutas comunitários. Eles atuam em comunidades carentes, nas escolas, postos de saúde, programas de saúde da família e em prefeituras como São Paulo, Londrina-Pa e Sobral-Ce.
 
Trata-se de um programa piloto na área de saúde comunitária que articula o saber científico com o saber popular na perspectiva de superação dos conflitos e na construção de redes sociais de apoio às pessoas em crise.

 Nossa experiência tem dado a convicção de que estas “doenças da alma” podem ser tratadas pelo próprio grupo. Eles têm problemas, mas tem também as soluções e precisam ser estimulados a tomarem consciência do potencial humano e cultural que possuem.

É no próprio grupo, trocando experiências, refletindo, se apoiando, reforçando os laços afetivos e os valores da cultura local que o tecido social vai se consolidando, que a consciência social vai despertando, descobrindo coletivamente as saídas possíveis para a superação dos problemas, facilitando a inserção social em novo contexto.

Nós nos identificamos com o método (RAP)* Pesquisa-Ação-Participação, que temos adotado há vários anos, definido como “rejeição do monopólio universitário sobre a produção do conhecimento e fazendo apelo aos saberes da base, na base e para a base”… 

*-Atelier Nord Sud de méthodologie en analyse, Réseau Culture Bruxelles mars 1997

As doenças da alma

 Nestes 21 anos de trabalho com as populações de excluídos no Brasil destacamos três categorias que atingem de forma contundente os indivíduos:

1. Disturbios do abandono.

 2. Disturbios da insegurança.

 3. Distúrbios da baixa auto-estima.

  1-ABANDONO:

 São populações inteiras, mergulhadas em forte sentimento de abandono e orfandade. Não fora um desejo muito forte de inserção social evidenciado pelas inúmeras associações de bairro e diversos cultos religiosos, a situação poderia ser bem mais caótica.

 As agressões contextuais, como o desemprego, a falta de habitação, saúde, educação, aceitação social, a falta de uma política de inserção social mais abrangente, constituem–se no maior atentado á vida em sociedade.

 Indivíduos e famílias entregues à própria sorte são levados a construir os próprios mecanismos de sobrevivência, modelos de funcionamento que só consideram o "aqui e agora" das necessidades fundamentais da existência humana, tais como saciar a fome, a sede, buscar segurança.

 Os efeitos do sentimento de abandono são visíveis em todos os níveis:

 -em nível individual: a própria aparência física: bocas desdentadas, rugas precoces, cabelos em desalinho;

-em nível familiar: mulheres abandonadas pelos maridos assumindo a responsabilidade de alimentar sozinha a família, famílias vivendo nas ruas, crianças abandonadas cheirando cola,

-em nível social: a própria configuração geográfica da favela, casas construídas com pedaços de papelão, caixas, madeiras nos reinviam a pedaços de existência de indivíduos, famílias e vidas.

Cada família, uma história, uma seqüência de sofrimentos, sentimento de exploração, de abandono e injustiça. Cada um parece prisioneiro de acontecimentos e, muitas vezes, emprega toda a sua energia para se defender do sentimento de estar “possuído” por forças ocultas, por espíritos dos mortos.

 Talvez o “encosto,” forma popular de possessão, nos fale de perda de liberdade de vida, da perda da autonomia e do estado de dependência do outro, das pressões sociais do novo contexto (Barreto 1988).

 Enquanto a dinâmica da urbis agrega pessoas em torno de lutas materiais específicas, como habitação, alimentação, saúde, através de associações e sindicatos, outras concentram as atenções no mundo secreto da espiritualidade.

São os líderes espirituais, os curandeiros que, no anonimato dos centros, no silêncio da noite, procuram com seus rituais, alimentar a fé que reanima a esperança de dias melhores, oferece a possibilidade de pertencer a uma família espiritual, e transforma o homem sofrido e solitário em pessoa pertencente a uma nova família, restituindo-lhe a alegria de viver.

 Para muitos, ser devoto de santo católico, filho de algum orixá africano ou até mesmo se deixar incorporar por um espírito de luz permite que esses indivíduos abandonados possam sentir a plenitude de um sentimento quase esquecido, o de fazer parte de nação de luz, na qual os governantes os acolhem com respeito e afeição.

 Aqui a cultura emerge como sustentáculo de uma identidade ameaçada pelo novo contexto. Tal qual a teia de aranha, a cultura é para o indivíduo o que a teia é para a aranha: ela agrega, une, alimenta e fortalece os vínculos que conferem a pertença.

 Os mais jovens formam gangues, verdadeiras “internetes sociais,” como estratégia para suprir o sentimento de anomia, abandono e o desejo de inserção a grupo que lhe confira o sentimento e pertença.

Outros, ainda, geralmente os mais sensíveis, padecem de depressão, crises nervosas, alcoolismo, drogas, prostituição.

 O que é mais dramático é que o sofrimento que padece o corpo e a família dos excluídos, no quotidiano, atinge violentamente as almas desses corpos.

Estabelece-se assim a guerra de valores em que o espírito das referências ancestrais fortemente paternalista se chocam com as novas referências do mundo urbano onde cada um tem que se virar para sobreviver.

 É neste contexto que muitos se mobilizam para não perder a guerra interior, para manter viva a esperança, a crença em valores, para poder salvaguardar a identidade ameaçada, no novo mundo que exige adaptações rápidas.

Os espíritos cultuados nos diversos cultos, tornam-se em grandes aliados desses homens. Sacerdotes e curandeiros são procurados para ajudá-los a resolver os conflitos da alma.

 Os curandeiros, guardiões da identidade cultural, através de cultos religiosos e rituais, tentam reanimar a alma desanimada pela dureza da vida.

Neste sentido, os cultos religiosos,católicos, espíritas, afro-brasileiros ou outros, funcionam como verdadeiras UTIs existenciais, para o homem sofrido, abandonado. Aqui a cultura tenta dar suporte, onde as instituições falharam.

Curando a dor da alma, conforta-se o corpo. Nestes contextos, os cultos tornam-se muito mais espaço de catarse coletiva, para reduzir o estresse, do que espaço de reflexão ou de tomada de consciência das implicações históricas e psicológicas do sofrimento.

Alguns cultos são terrivelmente agressivos, sobretudo algumas igrejas neo-evangélicas e pentecostais, que exigem de seus fiéis a recusa das crenças culturais. Trata-se de ruptura com o modelo referencial interiorizado há gerações, verdadeira destruição de identidades, de pertenças fundamentais, substituídas, por um falso EGO, construído sobre valores de uma religião da qual deve esperar tudo, e que se afirma pela negação do outro, do diferente.

Ela se impõe, o que reforça o sentimento de dependência, de submissão sectária.

No entanto, temos observado que outros cultos, como a umbanda, são muito mais respeitosos da diversidade cultural e oferecem a possibilidade de acolhimento, na neofamilia, na qual coabitam múltiplas imagens identificatórias, que podem, pelo respeito da cultura de base, se apropriar de modelo comunitário mais tolerante.

 A doença do abandono é a porta de entrada dos cultos. De cliente, torna-se adepto. A explicação da origem de todo mal ou malestar é atribuída aos maus espíritos, que devem ser exorcizados através de rituais. Sob o pretexto de exorcizar o mal, exorciza-se o homem de si mesmo, de suas crenças, de seus valores ancestrais, do senso critico. Trata-se de verdadeiro culto de esvaziamento do homem de sua identidade cultural.

Estamos convencidos de que enquanto os indivíduos não entenderem as implicações humanas e contextuais de seus sofrimentos e não tiverem o senso de co-responsabilidade, não haverá desenvolvimento sustentável possível.

2-INSEGURANÇA:

O clima de insegurança é um fermento de violência, de divisão, de fraturas, de rupturas no seio da sociedade, estimulada e alimentada pelo medo e ações irracionais geradas pela insegurança. Nas favelas, o clima de violência, roubo, crimes têm se intensificado com o desemprego. O desejo de sobrevivência é bem mais forte levando indivíduos e grupos a se organizarem para roubar e pilhar bens de primeira necessidade ou bens simbólicos.

Esses indivíduos ou grupos organizados começam a impor seu poder gerando um clima de insegurança e medo nas pessoas de ambos os grupos sociais.

 As casas tornam-se verdadeiras prisões, com grades de ferro para garantir a própria segurança, os moradores acabam construindo verdadeiras prisões para si mesmos. Trancadas em suas casas, as pessoas tornam-se reféns da violência.

Os mais pobres, os que moram nas favelas, vivem sobressaltados, com medo de perder um chinelo, uma peça de roupa, o botijão de gás, o que é ainda pior, de serem atingidos por alguma bala perdida durante as brigas de gangues.

O clima de desconfiança vai, aos poucos, quebrando os vínculos de solidariedade e acolhida, tão característicos das populações interioranas, gerando conflitos, intrigas, estupros, agressões contra vizinhos.

Os sintomas do distúrbio da insegurança atingem a todos: os jovens perdem o direito de circular livremente na cidade, onde as gangues já delimitaram seus territórios onde nenhum outro individuo de outra comunidade pode circular sem represálias.

As pessoas idosas são assaltadas quando recebem no banco, o dinheiro da aposentadoria. A ausência de uma policia cidadã que não inspira confiança torna o quadro ainda mais dramático. Em resposta a esse contexto, a cada dia, fica mais significativo o números de rituais de proteção usados, que vão desde o uso de símbolos protetores religiosos: como a cruz,os salmos, as medalhas, até o uso de cães e armas de fogo para sair às ruas.

A insegurança é o reflexo das condições sociais que se agravam a cada dia com a falta de emprego. Este clima de ameaça e de hostilidade leva os indivíduos a desconfiarem uns dos outros identificando qualquer pessoa desconhecida como possível inimigo. Com isso, praticam-se constantemente atos de discriminação, e exclusão contra o outro.

 Existe também a cultura da violência que é estimulada e vivificada por uma contracultura, expressa nos filmes e programas de comunicação de massa, nos jogos de guerra e videogames que, transmitidos à nossa imaginação, sem critérios ou legislação adequada, reforçam a idéia de que o herói é aquele que consegue tudo através do uso da violência e da força contra o outro.

 O espaço da família se vê invadido pela violência, na forma dos conflitos conjugais, na violência contra a mulher, nos maus tratos à criança.

 No Brasil, ela toma contornos ainda mais dramáticos com o surgimento de programas televisivos que estão sempre mostrando cena de crime ao vivo com todas as cores da violência e crueldade. Se a segurança como fator social é necessária para que se possa inspirar a confiança recíproca dos homens, estar seguro e poder confiar em si mesmo, na sua capacidade de dominar, de comandar os instintos, transformando-os em força para viver,são necessidades básicas para a paz do indivíduo e a paz social que nele se origina . O que é preocupante é que o clima de insegurança pode ser fermento de violência e divisão no seio da sociedade, pelos medos e ações irracionais que ocasiona.

 
3- A BAIXA AUTO-ESTIMA:

É evidente que, além da violência e do abandono, a exclusão social gere sentimento de menos valia, de desvalorização do indivíduo. Soma-se a isso a força dos estereótipos e preconceitos sociais reforçados por uma educação que não leva em conta os valores próprios do indivíduo. Estes elementos contextuais: educação doméstica repressora, os estereótipos sociais que desvalorizam a pessoa acabam por anular, por dilapidar o patrimônio íntimo do homem: A confiança em si.

 Desconhecem-se os dons inatos, aptidões e capacidades naturais. Desvalorizado, caso não consiga atingir os padrões intelectuais exigidos, introjeta o sentimento de incapacidade, e passa a não acreditar mais em si mesmo, se autoexclui, não se sentindo mais merecedor da felicidade, perdendo aos poucos a condição de amar e ser amado. Esse sentimento de descrença, em seu próprio potencial, se manifesta em vários níveis:

 A) individual: leva as pessoas a calar sentimentos e emoções mais profundos, a apresentarem assim um alto índice de tensão psíquica e somatizações físicas ;

B) familiar: uma educação repressora baseada em xingamentos em que a criança, desde cedo, é desvalorizada, é vista como incapaz criando um campo fértil para nutrir a insegurança e o sentimento de desvalorização.

 C) social: alto índice de abandono de empregos por se sentirem incapazes

 O quadro mais dramático, dentro de uma favela, não é a miséria retratada nos casebres, e sim a miséria oculta no íntimo das criaturas. O sentimento de incapacidade e de descrença nos próprios potenciais é que vem reforçar a marginalização dos indivíduos no corpo social que, muitas vezes os faz perder chances de trabalho e inserção social que lhes aparecem, pois inconscientemente eles próprios auto boicotam todas as oportunidades para crescer e vencer.

 Paralelamente às sessões de Terapia Comunitária, temos procurado minimizar este quadro criando grupos de reforço da auto-estima, através de técnicas e dinâmicas adaptadas às condições, procurando despertar o potencial humano amordaçado e colocá-lo a serviço de uma dinâmica individual e coletiva, levando as pessoas a se tornarem sujeitos da história e responsáveis pela existência.

 Reflexões:

As síndromes relativas ao abandono, insegurança e baixa auto-estima constituem um quadro preocupante em escala nacional. Constituem fermentos de violência e divisão no seio de uma sociedade, pelos medos e ações irracionais que podem ocasionar. Esse clima de tensão, desespero e muita angústia só pode desaparecer com a maior presença de instituições comprometidas com o bem comum. Quando as instituições estão ausentes ou são inoperantes, os indivíduos criam suas próprias regras e leis e tende a imperar a autodefesa, o salve-se quem puder, o que potencializa cada vez mais a violência fratricida.

Faz-se necessário criar instrumentos aptos a estimular uma “ação criativa” nos indivíduos que vivem nestes contextos anômicos. Eles devem se apoiar em valores individuais próprios e em valores culturais anteriormente desqualificados. Em nossa experiência, os novos instrumentos só podem ser concebidos num contexto grupal, participativo e comunitário.

 Nossa experiência tem nos firmado na convicção de que a solução está no coletivo e em suas interações, no compartilhar, nas identificações com o outro, no respeito às diferenças. Portanto é do grupo que devem emergir as soluções adaptadas. Essa perspectiva exige, dos profissionais, uma tomada de distância critica dos modelos explicativos do sofrimento, e das intervenções que implicam, muitas vezes em condutas lineares e redutoras (Exemplo do modelo biomédico que supervaloriza a quimioterapia ou modelo social que impõe, do exterior, ações tanto educativas como repressivas.).

 Os profissionais devem fazer parte dessa construção. Ambos tiram benefícios: A comunidade gerando autonomia e inserção social e os terapeutas se curando de seu autismo institucional e profissional, bem como de sua alienação universitária. Uma política de Autopromoção do indivíduo, como fator transformador do corpo social, deve permitir a ruptura de modelos paternalistas, que geram dependência e castra a criatividade.

 Não se trata de ficar somente à espera de investimento financeiro, mas sobretudo de investir no capital sócio-cultural do indivíduo excluído, para permiti-lo sair do lugar de objeto vítima, para um lugar de sujeito, ator de seu destino para tornar-se co-responsável na construção de uma sociedade mais igualitária, seja capaz de fazer suas escolhas criticas em busca de sua autonomia.

 Investir em políticas sociais capazes de promover e consolidar os laços afetivos e sociais, capazes de fazer surgir um sentido de pertença cultural inscrita numa comunidade de vida. Sair dos espaços para investir mais nos laços, ultrapassar o modelo individual, onde a solução de todos os males é esperada de um único individuo externo ou do político.

Precisamos estimular movimentos participativos em que cada um dê sua contribuição, o que permite paralelamente ao grupo desenvolver-se no conjunto como um todo. Como foi dito para o subdesenvolvimento, a perda da estima de si é um estado de privação em relação ao próprio saber. É importante iniciar e desenvolver os espaços de restauração identitário onde a palavra pode se liberar. Os saberes científicos devem reconhecer e integrar, enfim, os saberes ditos populares. A restauração da estima de si dos excluídos constitui a pedra angular da luta contra as doenças da alma do século XXI.

 Referencia Bibliografica:

 1-Barreto A.P. "UN MOVIMIENTO INTEGRADO DE SALUD MENTAL COMUNITARIA EN FORTALEZA, BRASIL" In Boletin Oficina Sanitaria Panamericana 117 (5), 1994

2-Barreto A. P. "L'ARAINEE ET LA COMMUNAUTE TISSENT LEURS TOILES" in Transitions nº 37 ( Rites culturels et Droits de la Personne) 135-142 Paris 1994

3-Barreto A. P. "LES AMES EN PEINE DANS LA VILLE" in Transitions nª 37 (Rites culturels et Droits dela Personne) 127-134 Paris 1994

4-Barreto A. P. ASPECTS CULTURELS SPECIFIQUES DU SYNDROME DE POSSESSION ET LA RELATION THERAPEUTIQUE Conferencia no 3º Seminaire inter-culturel Henry collomb na França em outubro 1988.


 

 

REPORTAGEM SOBRE TCI - HUMBERTO REZENDE PARA O CORREIO BRAZILIENSE


A cura pela solidariedade

Dom, 05 de Outubro de 2008 10:47 Administrador

 

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Ministério da Saúde inclui grupos de terapia comunitária em seu plano de atenção básica. Técnica é baseada em conversas e troca de experiências entre moradores de comunidades carentes de todo o país. Discussões vão do desemprego à violência doméstica






Humberto Rezende
Da equipe do Correio Braziliense
Sentadas em roda, na entrada de um posto de saúde de São Sebastião, elas iniciam o ritual que repetem todas as manhãs de quarta-feira, sem falta. Estão ali para conversar, desabafar, trocar experiências. Antes, porém, a coordenadora do grupo, Marilene Barbosa, lembra as regras a serem respeitadas: ouvir em silêncio, não julgar o que a outra pessoa diz, não dar conselhos, falar sempre de si e não da outra e, sempre que possível, citar canções, versos e provérbios que se relacionem com o assunto discutido.
Todas de acordo, é iniciada mais uma sessão de terapia comunitária, técnica surgida há 21 anos no Ceará e que, desde então, se espalhou por todo o país e chegou à Europa.

Definida por seu criador, o psiquiatra da Universidade Federal do Ceará (UFC) Adalberto Barreto, como “um espaço de acolhimento e escuta” (leia entrevista na página 22), a terapia comunitária acaba de ser abraçada pelo governo federal como parte da estratégia de atenção básica à saúde. Por meio de um convênio entre a UFC e o Ministério da Saúde, 1,1 mil profissionais das equipes do Programa Saúde da Família (PSF) serão capacitados, até março de 2009, para aplicar a metodologia em comunidades carentes de todo o país — exatamente o público para a qual a terapia foi desenvolvida.
Nas sessões, o terapeuta comunitário, ou facilitador, estimula os participantes a contar os problemas que os afligem. Depois das exposições, cada pessoa do grupo vota em um dos problemas apresentados. Aquele que gerar mais interesse será debatido. Além da pessoa que trouxe a questão, falam também aqueles que já passaram por uma situação parecida e podem dizer como lidaram com ela. Ao final, ocorre o ritual de agregação, quando, de mãos dadas, todos dizem o que estão levando da experiência vivida. Muitos grupos utilizam canções, que servem para encorajar os participantes a enfrentar seus problemas.

“Não se trata de psicoterapia, mas de uma rede solidária de apoio. A comunidade tem seus problemas, mas também tem as soluções”, resume a psiquiatra Maria Henriqueta Camarotti, uma das diretoras do Movimento Integrado de Saúde Comunitária do Distrito Federal (Mismec-DF), primeiro pólo a formar grupos de terapia comunitária fora do Ceará, desde 2001. Hoje, graças à entidade, cerca de 40 rodas funcionam no DF.

Prevenção
A metodologia tem atraído a atenção de médicos e psicólogos de todo o país, que se esforçam para multiplicar a experiência. Atualmente, são 36 pólos de formação nas 27 unidades da federação, que já treinaram 12,5 mil terapeutas comunitários — apenas no Pólo Quatro Varas, em Fortaleza, são atendidos, em média, 3 mil pacientes por mês (cerca de 500 mil atendimentos desde 1986). Há seis anos, especialistas brasileiros têm ajudado na disseminação da técnica pela Europa. Já foram criados três pólos no continente — dois na França e um na Suíça.

Ampliar a oferta no país é o principal objetivo do convênio assinado pelo Ministério da Saúde com a UFC, que dá prioridade a municípios com cobertura de pelo menos 30% do Programa Saúde da Família — e, por isso, não inclui o Distrito Federal (hoje com apenas 6,51% da população atendida pelos agentes comunitários de saúde). “Nossa intenção é que a formação dos agentes comunitários não se encerre nesse primeiro momento, que seja um trabalho permanente”, explica a coordenadora da Política de Práticas Integrativas e Complementares do Sistema Único de Saúde (SUS), Carmen de Simoni.
 “É um instrumento para que o agente melhore o trabalho que presta à comunidade”, completa.

Atualmente, não só agentes de saúde atuam como facilitadores. Os pólos espalhados pelo país já capacitaram líderes comunitários, enfermeiros, agentes pastorais, psicólogos e médicos, entre outros voluntários. No grupo, reina a convicção de que o método é um trabalho preventivo de saúde. De fato, um estudo de impacto realizado pela UFC em 2005 e 2006, com 12 mil questionários em 12 estados brasileiros, mostrou que 88,5% das demandas foram resolvidas dentro da roda de terapia. Somente 11,5% das pessoas precisaram ser encaminhadas para os serviços de saúde. Os dados mostram ainda que os temas mais freqüentes são estresse e emoções negativas (26%), conflitos familiares (19,7%), dependência de álcool e outras drogas (11,7%) e questões ligadas ao trabalho (9,6%).

Voluntários
Em São Sebastião, as demandas são muito parecidas com as apontadas no levantamento. “O que a gente mais discute são problemas como a falta de emprego e a violência doméstica”, diz Marilene, que divide seu tempo entre o trabalho como secretária na Câmara dos Deputados e a coordenação de grupos na cidade. Ela se tornou uma facilitadora depois de se encantar com os benefícios da terapia, ao participar de um grupo no Paranoá, onde mora. “Eu era uma pessoa fechada e fui ganhando confiança, me sentindo mais segura”, lembra.

Hoje, são seis grupos em São Sebastião, que contam com a presença assídua de mulheres como a diarista Francisca Maria de Sousa, 41 anos. Curiosa, como ela mesma se define, Francisca logo quis saber do que se tratava o tal grupo que estava sendo criado perto de sua casa. Participando das reuniões, percebeu que não tinha tido até então a chance de lidar com a dor de duas perdas que sofreu — as mortes da mãe, em 1995, e do primeiro filho, em 2000. “Mesmo tendo meu marido, que conversa muito comigo, percebi aqui que ainda sentia uma angústia muito grande”, conta.

Hoje, Francisca se diz feliz. A segunda filha, Laura, já completou 6 anos, e o casamento com Osmar Mendonça, 38, vai muito bem. E quando surge algum problema, ela sabe onde poderá desabafar e buscar uma saída, com a coragem que aumenta a cada dia. “Quando queremos alguma coisa, temos que trabalhar por ela”, ensina.


Entrevista - Adalberto Barreto

Psiquiatra da Universidade Federal do Ceará fala sobre técnica criada depois de visitar favela de Fortaleza

Humberto Rezende
Da equipe do Correio Braziliense
Há 21 anos, o psiquiatra Adalberto Barreto começou a receber, na Universidade Federal do Ceará, onde trabalhava, visitas de moradores da favela Pirambu, em Fortaleza. Eram pessoas com problemas emocionais dos mais diversos tipos — de relacionamentos à dependência de álcool — encaminhadas pelo irmão do médico, o advogado Airton Barreto, que fazia consultorias de forma voluntária na comunidade.

Percebendo que não daria conta de atender todos que precisavam, Adalberto reuniu um grupo de alunos e foi até a favela, em busca de uma forma eficaz de atendimento. O convívio com aquelas pessoas fez com que uma nova técnica, baseada na conversa, escuta e troca de experiências, fosse moldada. Surgia a terapia comunitária, trabalho encarado por Adalberto como preventivo, na qual a própria comunidade se ajuda a enfrentar os desafios da vida.

Em entrevista ao Correio, o criador da terapia comunitária fala sobre o trabalho que iniciou e defende o poder curativo da conversa e da escuta: “A palavra é o remédio, o bálsamo, a bússola para quem fala e para quem ouve”.

“A palavra é o remédio”


Qual o objetivo da terapia comunitária? E por que ela funciona?
A terapia comunitária surgiu como um projeto de extensão da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Trata-se de uma ação cidadã que transcende classes sociais, profissões, raças, credos, partidos. Cada um partilha seu saber, sua competência, integrando saberes e construindo uma grande rede solidária. São agentes comunitários de saúde, agentes pastorais, lideranças comunitárias, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, advogados, artistas, sacerdotes, pastores, curandeiros, médicos, educadores, enfermeiros... A comunidade age onde a família e as políticas sociais falham. Funciona porque a comunidade descobre que ela tem problemas, mas também tem as soluções. E aos poucos vai descobrindo que a superação não é obra particular de um indivíduo, de um iluminado, de um governo, ou de um terapeuta, mas é da coletividade. Na terapia comunitária, a palavra é o remédio, o bálsamo, a bússola para quem fala e para quem ouve. É da partilha de experiência entre as pessoas que se alivia o sofrimento das dores da alma, e se vislumbram novas pistas de superação dos problemas.

O que esses anos de trabalho ensinaram ao senhor sobre as pessoas? A técnica parece ser uma espécie de voto de confiança na capacidade do ser humano de se reunir e se ajudar.
Esses 21 anos de trabalho têm mostrado que a academia não tem a hegemonia da produção do conhecimento. Ela produz um conhecimento imprescindível e necessário, mas a experiência de vida também produz conhecimento. A carência gera competência. Geralmente, damos melhor aquilo que não recebemos. O enfrentamento das dificuldades produz um saber que tem permitido aos excluídos sobreviverem através dos tempos. Eles dispõem de mecanismos próprios para superar as adversidades, e os sofrimentos e superações expostos e refletidos pelo grupo promovem a criação gradual de consciência social. Permitem que os indivíduos descubram as implicações sociais na gênese do sofrimento humano. Geralmente, atribuímos nossas competências a cursos que fizemos ou livros que lemos, e jamais a algo que vivenciamos. Nós só nos empoderamos quando compreendemos e aceitamos ser sujeito ativo aprendendo com a nossa história.

Por que a terapia comunitária atrai tantos profissionais interessados em difundí-la?
Os modelos de intervenções terapêuticas são, em sua grande maioria, voltados para o atendimento individual. Nas universidades, se aprendem técnicas para serem aplicadas em consultórios, tendo o indivíduo como paciente ou, no máximo, incluindo a família. Existe uma grande pobreza em técnicas que privilegiam o grupo. A terapia comunitária, de certa forma, preenche essa lacuna, oferecendo aos profissionais um instrumento de intervenção coletiva.

Em muitas comunidades, os líderes religiosos são muito presentes. Como fazer com que a busca por conforto não seja só uma repetição dos sermões das igrejas?
Identificamos pelo menos duas grandes linhas de ação que norteiam as ações dos cuidadores. Primeiro, existe o modelo do salvador da pátria, que privilegia a falta, o negativo, as carências, os pecados. Essa abordagem gera um sentimento de insegurança e culpabilidade e leva o indivíduo a buscar um salvador, um guru, um doutor, uma igreja capaz de libertar do mal e se salvar. A solução vem de fora, o que deixa o grupo refém de suas lideranças. Já o modelo co-participativo, que propomos na terapia comunitária, se baseia na competência das pessoas. Valorizamos a autonomia e a co-responsabilidade. Cada um é parte do problema e parte da solução. Por isso, algumas regras estruturam as rodas: não dar conselho, não fazer sermão nem discurso, fazer silêncio quando o outro fala, não julgar, falar de si usando eu e propor músicas, piadas ou poesias em função da temática conduzida. O terapeuta comunitário não faz a terapia para a comunidade, ele faz a sua terapia com a comunidade. Ambos tiram benefícios. Os profissionais vão se curando de sua alienação acadêmica, universitária ou religiosa, e as pessoas se tornam mais autônomas e menos dependentes de psicotrópicos, dos profissionais e das instituições.


 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

ARTIGO - DO INDIVIDUAL PARA O GRUPAL - TERAPIA COMUNITÁRIA INTEGRATIVA por Henriqueta Camarotti


Terapia Comunitária Integrativa: do individual para o grupal – eis o desafio!
Maria Henriqueta Camarotti [1]

A Terapia Comunitária Integrativa (TCI) é uma abordagem em grupo e como tal é centrada e tem como objetivo, o grupo. Neste capítulo vamos aprofundar o paradigma grupal e como este se intersecciona com a prática dessa metodologia. Trata-se de uma reflexão sobre a passagem do olhar terapêutico do individuo para o coletivo, percebendo o grupo como alvo da metodologia da TCI.

Para iniciar nossa reflexão, entendemos que para perceber a Roda de TCI como uma abordagem grupal é imprescindível que o terapeuta comunitário absorva o processo de forma inteira, tendo começo, meio e fim, entendendo a metodologia em todas suas etapas. Sem essa visão fica muito difícil e até sofrido para o terapeuta acompanhar os depoimentos dos participantes e ter, ao mesmo tempo, que fazer fluir a metodologia adotada. Por que acreditamos ser esse processo difícil? Porque ele, o terapeuta, vai ficar sempre no dilema entre concentrar sua atenção nas pessoas que estão expondo suas dificuldades e ao mesmo tempo não perder de vista o grupo como um todo.

Segundo Jorge Ponciano Ribeiro, gestalterapeuta estudioso do grupo psicoterapêutico (1994), o grupo é transformador, sempre muito maior que a soma de seus membros. Sobre isso, este autor afirma que “O grupo é um fenômeno cuja essência reside no seu poder de transformação, no seu poder de escutar, de sentir, de se posicionar, de se arriscar a compreender o processo de significação do viver e do responsabilizar-se” (1994, p.10). Na prática percebemos que tanto o grupo psicoterapêutico quanto o terapêutico tem mais força no empoderamento das pessoas, pois seus membros, todos juntos, buscam a compreensão do mistério humano, dos sentimentos mais básicos de nossa existência: dor, raiva, angústia, alegria, amor, medo, tristeza. No grupo aprendemos que todos somos diferentes mas, ao mesmo tempo, próximos em nossas essências.

Nas formações em TCI se faz necessário conceituar grupo, seus alcances e possibilidades. Pautada na visão do grupo trazida pelo Mestre Ponciano, sempre acho importante clarear o diferencial entre os conceitos de terapia em grupo, terapia de grupo e terapia do grupo (RIBEIRO, 1994). Nós compreendemos que na terapia em grupo as pessoas participam do grupo, mas podem ser trabalhadas individualmente ou em subgrupos. O terapeuta pode realizar abordagens direcionadas a uma pessoa na presença dos demais componentes do grupo. O objetivo da terapia em grupo é focar na pessoa mais mobilizada naquele dia, recorrendo aos demais participantes como forma de suporte ou continente para a pessoa trabalhada.

Na terapia de grupo, acontecem trocas e aprendizados uns com os outros, ainda numa perspectiva do individual para o individual ou mesmo do individual para o grupal ou de terapeuta para o individual ou grupal. Nessa situação, todos são vistos como partes que formam um todo.

Enquanto que na terapia do grupo, o alvo e interesse das ações estão voltados para o grupo. O “cliente” é o próprio grupo. O terapeuta tem como objetivo fazer com que o grupo evolua na direção da expansão da consciência sobre seus problemas e sobre suas soluções. Há uma certeza interna do terapeuta de que se ele for fiel à necessidade e soluções que emergem do grupo, ele alcançará um ritmo harmônico na caminhada de todos. Na terapia do grupo, o grupo existe como uma configuração única, formada por inúmeras partes indissociáveis e que o todo será sempre maior do que a soma das partes.  Nesse formato todos vêem a si mesmo e ao mundo com olhar do outro.  

Como o mote desta reflexão é compreender a Terapia Comunitária Integrativa como um grupo, afirmamos baseados na compreensão dessa metodologia, que ela seja uma terapia do grupo. Os terapeutas, mobilizados pelos ensinamentos da formação e, por sua prática, vão absorvendo progressivamente o paradigma grupal, facilitando, desta forma, a passagem das questões individuais trazidas pelos participantes para o tecido grupal que começa a ser confeccionado suavemente. Os temas colocados nas Rodas são portas de entrada para o trabalho grupal, verdadeiros gatilhos da consciência do grupo.

Para ajudar na construção do paradigma grupal, vamos apresentar a seguir as etapas ou momentos da Roda da TCI em que se verifica claramente a passagem do individual para o grupal. Este salto paradigmático evidencia que a sequência metodológica tem o objetivo de acessar a dimensão coletiva do grupo, entendendo que este é o nosso foco e “cliente” a ser acolhido. A seguir são descritos os momentos em que esse fenômeno acontece:

1-      Organização do espaço: Na Terapia Comunitária Integrativa as cadeiras são organizadas em circulo.  Esta configuração facilita a proximidade dos participantes e a horizontalidade do processo; promove a igualdade de participação e o respeito ao diferente; finalmente, convida a todos para um diálogo intimo e respeitoso. Quando posicionados em círculo cada pessoa se percebe integrada ao outro e disponível para a troca. Este é o primeiro passo para a formação do “Ser Grupal”.
2-       Acolhimento e dinâmica: quando os participantes são acolhidos dentro de um clima caloroso, estimula-se a quebra das resistências e dos medos, todos são iguais nas suas comemorações, todos podem brincar e se aproximar livremente. Podemos afirmar que esta etapa seja o segundo passo para a construção do “Ser Grupal”.
3-      Escolha do Tema: nesta etapa os participantes são livres para escolher o tema, fazendo conexão com algo que está vivo dentro deles – suas historias de vida. A proposta de dizer o porquê daquela identificação leva ao acionamento dos arquivos antigos que são colocados à disposição do inconsciente do grupo. Nesse momento cada pessoa busca em si mesma a razão daquela escolha. ”Eu escolho o tema tal porque fiquei muito tocada ou porque minha família já passou por isso...”. Na votação, o grupo escolhe o tema entre os propostos na Roda e, pela experiência, percebemos que na maioria das vezes o grupo elege o tema que mobiliza a todos e que proporciona inúmeros depoimentos na fase de compartilhamento. Entendemos que os participantes votam no tema que mais tem a ver consigo mesmos, aquele que toca sua história de vida. Eis aqui o terceiro passo para a formação do “Ser Grupal”
4-      Nas Perguntas, durante a Contextualização: o tema trazido pela pessoa escolhida mobiliza a busca de compreensão das vivências de cada um. Incrível perceber que os participantes fazem as perguntas para si mesmo; perguntam sobre suas dúvidas, seus conflitos. Quando um comunitário elabora sua pergunta ele está percorrendo um caminho dentro de si mesmo, se interrogando sobre seus próprios dilemas. As perguntas feitas pelo grupo evidenciam o quarto passo para a formatação do “Ser Grupal”.
5-      Na Problematização ou Compartilhamento de Experiências: ao responder a indagação através do Mote, o grupo, através dos depoimentos, se consolida em torno de um tema, cada pessoa vai ampliando o tema na sua perspectiva, mas sem perder o elo de conexão com todos. Nesse momento acontece o ápice da transmutação, do que a principio eram questões individuais, para um somatório muito mais que a soma das partes. Este é o quinto passo para o “Ser Grupal”, que se torna mais forte, mais consolidado.
6-      No encerramento: quando os participantes contribuem com a conotação positiva e respondem a pergunta “O que estou levando daqui?”, eles estão sintetizando para si toda substância vivenciada no grupo. Cada participante se conscientiza do feixe de possibilidades trazido e levado por todos. O comunitário, que já peneirou as opções que lhe soaram familiares, partilha suas pérolas com o grupo, reforçando a rede grupal já tecida nas várias etapas anteriores. Na conotação positiva, ele admira o que o grupo construiu e leva para si a resultante dessa construção coletiva; deixa consolidado o formato grupal ao se relacionar com suas alianças afetivas, que lhes conferem unidade e identidade.  Esta finalização representa o sexto passo para este “Ser Grupal”.

Em todos esses momentos o fenômeno vivenciado deixa de ser pessoal e passa a ser coletivo. Muito interessante refletir que as partes estão no todo e que o todo é maior do que a soma das partes. Nesse aspecto ressaltamos a importância do Pensamento Sistêmico como um dos pilares da TCI. Podemos afirmar que cada etapa do desenvolvimento da TCI contém a essência da grande Roda, saindo da lógica individualista, sectária, para a lógica coletiva, sistêmica. Reafirmamos que no final da sessão teremos alcançado um resultado que representa bem mais do que a soma dos aprendizados individuais e que com certeza, uma vez introjetado por todos, reverberará aos familiares e a rede comunitária, formando assim a resiliência comunitária.

Quais serão as ações e características do terapeuta comunitário que facilitam a construção do Ser Grupal? Primeiramente podemos dizer que construir uma configuração de grupo requer abertura e segurança naquilo que se faz. A seguir citamos algumas ações ou características que os terapeutas comunitários deverão apresentar para tornar a Roda de TCI uma terapia do grupo:

1-      Compreender tranquilamente e sem reservas que a TCI é uma terapia do grupo;
2-      Repassar nas oportunidades a segurança de que no transcorrer do grupo todos irão ter a resposta que precisam. É imprescindível para o terapeuta, ter a certeza interior para ser convincente diante do grupo e não ficar dividido quando alguém esteja querendo falar demais mesmo que seja de uma dor pessoal intensa;
3-       Trabalhar suas próprias aflições e dificuldades e sempre que algum tema mobilize suas emoções, buscar aprender com o grupo e a perceber outros ângulos de sua própria questão (“só reconheço aquilo que conheço”);
4-      Ter tranqüilidade quando for necessário retomar o ritmo das etapas metodológicas, tendo que interromper a fala de um participante ou lembrar as regras da Roda. Quando ele toma essa decisão,  estará calcado na certeza de que a sequência das etapas construirá uma gestalt[2] muito terapêutica e beneficiadora para as questões de todos;
5-      Repetir como num ritmo musical as perguntas ou as orientações referentes a cada etapa. Por exemplo, repetir o Mote a cada uma ou duas partilhas; repetir a pergunta “e eu, o que estou levando daqui ?” quando no momento da finalização. Muitas vezes os participantes se distraem, podendo trazer novos assuntos ou novas demandas o que provocaria a dispersão do grupo como um todo;
6-      O terapeuta comunitário precisa estar com as rédeas da metodologia em suas mãos. Ele não escolhe os temas e nem as pessoas que vão falar, mas cuida para que todas as etapas se completem, fechando o círculo formador do Ser Grupal. Se os componentes da roda não se pronunciarem, entender que o silêncio também é linguagem de comunicação.

Refletindo sobre a Roda da TCI como uma terapia do grupo, é importante falar um pouco sobre a formação dos terapeutas comunitários.

Normalmente, durante as formações, os alunos trazem uma preocupação sobre como curar ou resolver os problemas daquela pessoa específica que colocou o tema. Muitas vezes o terapeuta em formação fica ligado naquela pessoa, se mobilizando pelos sentimentos de compaixão. Se isso acontece, o terapeuta não consegue fluir naturalmente nas demais fases da metodologia. Esta postura entrava a fluidez das etapas e, consequentemente, o processo de passagem do individual para o grupal é comprometido. Nessas circunstâncias, todo processo pode ficar prejudicado e como as etapas não fluem, o grupo não recebe os benefícios esperados.

Quando o terapeuta em formação acredita na mágica da gestalt da Roda, do começo, meio e fim, esse fenômeno permite acolher as necessidades de todos e todos receberão do grupo na medida de sua necessidade real e não do seu desejo. Essa compreensão sintoniza com os princípios de Platão[3] que orienta aos mestres fornecer às crianças e aos jovens o que eles precisam e não o que eles desejam. Esse princípio promove a distribuição equânime dos recursos e potencializa a circulação do acolhimento entre as pessoas. Entendemos que os princípios da TCI nos fortalecem a compreensão de que, num grupo de pessoas, todos ganham quando os recursos pessoais e coletivos são colocados à disposição de todos e partilhados na medida de suas necessidades.

Quando as Rodas da TCI vão acontecendo sistematicamente nas comunidades, os participantes vão incorporando, de forma até inconsciente, a segurança de que eles vão ser beneficiados se a seqüência metodológica acontecer de forma harmônica e dentro dos tempos previstos. Temos percebido que logo após a implantação das Rodas, as pessoas ficam ansiosas para falar muito de suas questões, pois estão apegadas ainda ao paradigma do seu problema individualmente. Na evolução do processo, os participantes vão adquirindo confiança e muitas vezes ajudam aos terapeutas a dar seguimento às etapas. Este é um processo lindo de ver os próprios comunitários acreditando na mágica encantadora da Terapia Comunitária Integrativa.
Comentários Finais:
}  Sem dúvida a Roda de TCI é uma terapia do Grupo
}  Todas suas etapas convergem para criar um ambiente propício à construção do Ser Grupal
}  Muito importante que o formador tenha certeza desse princípio para transmitir esta convicção aos formandos.

Bibliografia
RIBEIRO, J. P. Gestalt Terapia: O Processo Grupal. 3ª Ed. São Paulo: Editora Summus. 1994.




[1] Neuropsiquiatra, mestre em psicologia, gestalterapeuta, terapeuta comunitária e presidente do MISMECDF
[2] Configuração
[3] Filósofo e matemático grego que viveu nos séculos V a IV AC. Criou a Academia em Atenas e ajudou a construir os alicerces da filosofia natural, da ciência e da filosofia ocidental.