ACOLHIMENTO NA TERAPIA COMUNITÁRIA INTEGRATIVA
A Roda da Terapia Comunitária Integrativa (TCI) começa
com a fase do Acolhimento. Todos
sentados em círculo, numa relação horizontalizada, terapeutas e participantes,
se preparam para viver esse momento. No início o terapeuta comunitário explica,
em poucas palavras, o que é a TCI, expõe as regras e comemoram aniversários e
datas importantes para os integrantes do grupo (CAMAROTTI e GOMES, 2009).
Falar de acolhimento
seria falar da Terapia Comunitária como um todo, pois em cada fase e ritual
vivenciado na Roda existem elementos de acolhimento, de suporte e de escuta. De
fato, esta metodologia nasceu do acolhimento
que os irmãos Barreto, Airton e Adalberto, se propuseram a fazer com as pessoas
da Favela do Pirambu/Fortaleza, Ceará (BARRETO, 2007). No nascedouro dessa
abordagem, emergiam espontaneamente vivências práticas de acolhimento[3], recepção, abrigo; sintonia perfeita com o
desdobramento da metodologia utilizada, posteriormente denominada por Adalberto
Barreto de Terapia Comunitária.
Para iniciar nossa reflexão sobre o Acolhimento,
chamamos atenção para o significado de gesto
e linguagem, expressões tão importantes nas relações humanas. Há que se
harmonizar essas duas ações de forma que o ato
de acolher seja percebido como falas e atitudes genuinamente expressadas
pelos terapeutas comunitários no momento da Roda. O acolhimento é sentido e
recebido como tal quando é realizado por uma pessoa que está se auto-acolhendo
nas suas várias dimensões e realidades.
O terapeuta comunitário, para poder acolher o outro,
deve começar a acolher a si mesmo nas suas múltiplas identidades; é nesta
capacidade de se acolher que nasce a possibilidade de uma sintonia entre a
postura, o gesto e a palavra, permitindo assim um acolhimento autêntico e
realmente caloroso, pleno de verdadeira atenção por si mesmo no encontro com o
outro.
Nesse sentido relembramos o conceito do filósofo
Martin Heidegger[4], quando fala que o acolhimento do outro, quando na
vigência de um autoacolhimento, se torna uma doação do ser e do tempo,
verdadeiramente. Essa via de mão dupla de quem acolhe e de quem é acolhido, de
quem fala e de quem escuta, forma um verdadeiro encontro, revelado numa dimensão fenomenológica mais íntima e menos
coisificante. Carmem Lúcia Barreto (2008) complementa essa reflexão e afirma
que na dimensão heideggeriana, a
experiência consiste em ser “afetado” e “transformado” num encontro com o outro
na sua alteridade, um acontecimento dramático que supõe o estar instalado num
mundo como horizonte de encontros. Esse “horizonte, ao mesmo tempo, abre-se
para transformações e resiste e se opõe a qualquer captura pelo outro”.
Portanto, o que se mostra mais importante prá nós é
entender o acolhimento não como uma captura da alma do outro, e sim um processo
de libertação desse outro, estimulando-o a assumir o leme de sua vida e
direcionando-o para fazer suas escolhas. Em resumo, o Acolhimento na Terapia Comunitária é o ato de fortalecimento do
grupo para entregar-se a si mesmo, empoderando-o na sua capacidade de decisão e
busca do autoconhecimento.
Para enriquecer este texto sobre o Acolhimento na TCI,
gostaria de incluir as pertinentes reflexões do filósofo Martin Buber[5]. Este pensador, de origem judia, contribuiu, através
do caminho da Filosofia do Encontro e do Diálogo, para entendermos as relações
humanas como necessariamente uma reciprocidade dialógica, onde tudo se passa no
“entre”, na relação entre os
interlocutores. Segundo Buber, existem duas formas do homem se aproximar do
mundo: colocando-se face a face na relação EU-TU, ou então, numa relação
coisificante, denominada por ele de EU-ISSO.
A proposta da Terapia Comunitária e, sobretudo, do acolhimento
que ela carreia, segundo nossa visão, está centrada numa relação EU-TU,
significando uma relação inter-humana – termo utilizado por Buber – em tudo
aquilo que ocorre na realização de uma Roda. Nessa relação caracterizada como
inter-humana, quando alguém se expressa, falando de sua dor e de seu sofrimento,
todos os demais se tornam cúmplices da história do outro, se revelando também
parceiros na busca de soluções.
Os
sentimentos, nós os possuímos, o amor acontece. Os sentimentos residem no homem
mas o homem habita em seu amor. Isto não é simples metáfora mas a realidade. O
amor não está ligado ao EU de tal modo que o TU fosse considerado um conteúdo,
um objeto: ele se realiza, entre o EU e o TU”. (BUBER, 2001, p.17 In GOMES,
2009/2010).
Importante frisar que para que o Acolhimento aconteça
da forma como propõe a TCI necessário se faz respeitar e introjetar as regras
do não julgar, não fazer discurso, não
fazer sermão; pois, o julgamento do outro nos afasta inexoravelmente desse
outro e inviabiliza uma relação na forma de EU-TU como concebida por Buber. A
pessoa que julga transforma o outro em coisa, fazendo acontecer então uma
relação EU-ISSO.
Finalmente podemos afirmar que para que o Acolhimento
se torne um fenômeno de amor, numa concepção buberiana, há que se desenvolver
entre os participantes da Roda uma relação sem julgamentos e sem a priori. Este é nosso objetivo e nosso
sonho como terapeutas comunitários!
A fase do Acolhimento é um momento fundamental na Roda
de TCI no sentido de promover a integração do grupo e a abertura de espírito
para a participação da sessão. Concordamos com Maria das Graças Martini (2011)
quando diz que “O sucesso da Terapia
Comunitária começa com o trabalho do co-terapeuta que realiza o acolhimento
que, quando bem feito, envolve os participantes numa energia de amorosidade e
harmonia, deixando-os a vontade, acolhidos e em sintonia com o clima da Terapia”.
A integração na Roda se começa pelas atitudes: todos
em circulo, numa posição de igualdade e direitos, na maneira de se sentar, de
deixar o espaço aberto para novos participantes (mesmo que cheguem atrasados).
Contrariamente às situações de verticalidade, que impõe às pessoas certo
constrangimento, a Roda de TCI autoriza todas as formas de expressão; deixa as
portas e janelas abertas para se chegar e sair a qualquer momento e vontade.
A fala
explicativa e amorosa sobre a Roda que irá acontecer, provoca muito conforto
para as pessoas por saber antecipadamente o sentido do encontro. Além disso, as
dinâmicas de aquecimento realizadas para aquecer e integrar o grupo é uma forma
mágica de gerar foco e acuidade através de estímulo ao movimento e à expressão
corporal. Os terapeutas comunitários franceses percebem o Acolhimento como o
momento de “briser la glace”[6], onde os participantes relaxam e se entregam para
viver aquela experiência.
Na Terapia Comunitária vemos que a fase do Acolhimento
é o momento em que as pessoas são recebidas, integradas ao grupo,
tranquilizadas de suas preocupações e ansiedades. Por ser uma
metodologia com etapas precisas e sequenciais, as explicações iniciais
tranquilizam os participantes e evitam o desencadeiamento de ansiedades ou
outros sintomas ligados ao momento de expectativas. Em todas as etapas
seguintes, os animadores anunciam os procedimentos propostos e reforçam sempre
a Roda como um espaço aberto para falar ou não falar, se expressar da maneira como
cada um consegue ou deseja. Assim, o
facilitador confiante na metodologia, pode superar o medo das falas soltas ou
de que as "interpretações grosseiras"
causem reações emocionais ou descompensações dos participantes. O acolhimento
promove ao grupo um espaço de fala seguro e envolvente
Fazendo uma imagem desse momento, poderíamos
considerar a Roda de Terapia como o momento onde “eu aqui posso soltar as armas e relaxar”, “aqui eu posso ser eu mesmo”. Neste momento os participantes entram numa
viagem, anunciada e preparada pelo “piloto” para que o encontro se desenvolva o
mais harmonicamente possível: “Atenção
senhoras e senhores vamos nos preparar para que o vôo seja confortável e
amoroso...”
Consideramos a Terapia Comunitária Integrativa como
uma metodologia lógica, concatenada, onde todas as fases têm sua importância em
si e no conjunto. Seguindo essa concatenação, consideramos que o Acolhimento
tenha os seguintes objetivos:
1- Criar um espaço circular de fala e de escuta;
2- Dar boas vindas a todos que vieram participar da Roda;
3- Tranqüilizar as pessoas quanto ao processo da TCI que
vai se desenrolar;
4- Apresentar as regras da metodologia da TCI para os
participantes;
5- Promover a inclusão e estimulo da autoestima quando
nas boasvindas, esclarecimentos e comemoração dos aniversariantes e das datas
importantes;
6- Promover relaxamento e segurança nas pessoas com as
informações dadas e com as dinâmicas de integração;
7- Integrar o grupo, tornando-o mais próximo, mais afetivo
e lúdico.
Didaticamente, podemos dividir a Fase de Acolhimento
em dois momentos: 1- Boasvindas e esclarecimentos e as 2- dinâmicas
interativas.
Na primeira fase das boasvindas e esclarecimentos se torna fundamental a postura e o
centramento do terapeuta comunitário. Esta postura segura e tranquila do
terapeuta, baseada na precisão das regras e da metodologia, e muitas vezes na
parceria dos coterapeutas, tem um papel muito importante, pois, oferece
proteção aos participantes e proporciona que o grupo se autoregule. É o momento em que as pessoas precisam assegurar-se
que estão protegidas e seguras para se entregar àquela experiência. Normalmente
elas trazem sentimentos e expectativas muito fortes e, às vezes turbulentas,
para a Roda; são pessoas que estão vivendo dificuldades extremas na busca da
sobrevivência, e, o Acolhimento é o momento de buscar apaziguar um pouco a
mente para possa abrir-se para novas informações e experiências. É um hiato
providencial no burburinho do cotidiano.
Muito importante sublinhar o trabalho realizado sobre
os terapeutas comunitários durante sua formação, de forma a deixá-los
tranqüilos, seguros e confiantes, pelos recursos da metodologia (regras etc) e
pela confiança na capacidade de autorregulação do grupo. Nós terapeutas tendemos
a perceber o grupo como uma força harmônica, onde podemos contar com ela
durante todo percurso da Roda.
As dinâmicas interativas ou de aquecimento são
oportunidades de romper com o fechamento natural de quem chega a um ambiente
estanho, de forma a integrar o grupo num nível de horizontalidade harmoniosa e
calorosa. Aconselha-se utilizar dinâmicas curtas (3 a 5 minutos no máximo),
leves, alegres e adequadas a cada tipo ou idade dos participantes. Muito
importante observar a cultura de cada grupo e utilizar dinâmicas advindas da
história de vida, das vivências infantis ou mesmo do arcabouço cultural das
pessoas.
A comemoração dos aniversários, festas, realizações e das
boas notícias tem uma grande relevância neste momento de celebração da vida,
antes de abordar o sofrimento, dirigindo a atenção para a possibilidade de
superar dificuldades. É uma respiração de vida e bem-estar, acalmando os
receios dos participantes, lembrando-nos que "após a tempestade vem a bonança", que a vida é feita também de
momentos felizes. Ela também representa a aceitação de cada um pelo grupo.
Nesse primeiro momento da Roda, na fase do
Acolhimento, é acionado o ponto de partida de um “fio” que vai se desenrolando
até o final. Os terapeutas explicitam então que a Roda de TCI é um continuum, onde tudo faz sentido e tem
uma função no contexto. Muito importante que o terapeuta expresse que a
metodologia da TCI tem um começo, um meio e um fim. Claro que não é necessário
nomear neste momento todas as fases vindouras, mas, os animadores da Roda
transmitirão aos participantes a compreensão de que cada momento se completará
com os seguintes.
Como devem ser a fala e a postura do terapeuta nesse
momento? A seguir listamos algumas sugestões para a postura do terapeuta:
1- Atitude simpática, aberta, compreensiva e ao mesmo
tempo firme nas suas colocações;
2- Atitude corporal também de abertura, bem posicionado,
olhando para todos nos olhos com suavidade, assumindo uma posição na Roda onde
possa visualizar a maior parte possível do grupo;
3- O discurso deve ser sintético, falando do essencial,
daquilo que vai ser fundamental na seqüência da Roda. Falar num tom de voz
suave, claro e numa altura possível de ser escutado por todo grupo;
4- Cuidar para que não se interrompa a seqüência
metodológica da Roda, sobretudo quando acontecem falas longas e fora do que é
solicitado no momento;
5- Saber cortar as falas ou discursos de forma suave e
firme. Muito importante que o terapeuta esclareça que durante a Roda a pessoa
poderá falar de suas dores e sofrimento e também ser escutada com carinho;
6- A equipe de terapeutas comunitários deve ficar atenta
a todo grupo, além de acompanhar as pessoas que estão se expondo naquele
momento.
Entendemos que um Acolhimento afetuoso possibilita o
grupo a ficar confiante e predisposto a participar da melhor forma possível da
Roda da Terapia Comunitária. Esta convicção precisa ser transmitida durante a
formação, assim como é nos encontros dos Módulos e das Intervisões que os
terapeutas comunitários vão se preparando para acolher as pessoas no seu
sofrimento, nas suas alegrias, nas suas peculiaridades e diferentes naturezas
humanas.
Podemos concluir essa reflexão dizendo que se
tivéssemos uma palavra para resumir toda a formação de Terapia Comunitária essa
palavra seria Acolhimento.
Bibliografia
BARRETO, A. P. Terapia Comunitária passo a passo. Fortaleza. 2007
BARRETO, J. A. P. Direitos Humanos e cidadania na favela. In: GRANDESSO,
M. e BARRETO, M. R. Terapia Comunitária: Tecendo Redes para a transformação
Social, Saúde, Educação e Políticas Públicas. São Paulo: Casa do Psicólogo.
2007.
BARRETO, C. L. B. T. Uma possível compreensão fenomenológia existencial
da clínica psicológica. Postado em 2008 http://www.lefeusp.net/arquivos_diversos/VIII_simposio_anpepp/textos%20pesquisadores/barreto08.pdf
Postado em 2008.
Pesquisado em 2012.
BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Centauro Editora. 2012.
CAMAROTTI, M. H. e GOMES, D. O. Terapia Comunitária: a circularidade nas
relações sociais. IN: OSORIO, L.C. e VALLE, M. E. P. Manual de Terapia
Familiar. Porto Alegre: Artmed. 2009.
FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1986.
GOMES, P. B. A Filosofia do Relacionamento. Ano III - Nº VI- Out 2009/Jan2010
-http://www.cidadesp.edu.br/old/mestrado_educacao/artigos/egressos/2009/a_filosofia_do_relacionamento.pdf
LELOUP, J. Y. Cuidar do Ser: Filon e os Terapeutas de Alexandria. 6ª Ed.Petrópolis: Editora Vozes. 2001.
MARTINI, M.G.P. Mote: a alma da terapia comunitária Pesquisado em 28 de
dezembro de 2011 http://www.abratecom.org.br/publicacoes/cientificos/artigo10.asp
[1] Neurologista, psiquiatra, mestre em psicologia, Gestalt Terapeuta,
terapeuta comunitária e formadora dessa metodologia.
[2]
Gastroenterologista, especialista em alcoolismo, terapeuta comunitária e
formadora da TCI em Marselha - França
[3] A palavra acolhimento significa recepção, atenção,
consideração, refugio, abrigo, agasalho (FERREIRA, 1986
[4] Martin Heidegger, filósofo alemão, é um dos pensadores mais importante
do século 20. Esse pensador considerava o seu método
como fenomenológico e hermenêutico. Sua proposta fundamental foi por em
evidência o que está na maioria das vezes oculto nas coisas.
[5] Filósofo, escritor e pedagogo de origem judaica, nascido, no final do
século XIX, em Viena, Áustria. Centrou sua obra na Filosofia do Diálogo.
Publicou as seguintes obras: Eu e Tu, Sobre a Comunidade, Eclipse de Deus e
Lenda do Baal Schem, A.
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