segunda-feira, 10 de abril de 2017

NO MESMO DIA por MARIA EMÍLIA BOTTINI


 
NO MESMO DIA

 Maria Emília Bottini[i]

 Ao dirigir-me ao trabalho, via de regra, ouço algumas músicas que me agradam a alma, mas vez por outra também gosto de saber o que está acontecendo na capital do Brasil.

Dia desses ouvi sobre uma quadrilha que fora presa, pois assaltava condomínios de luxo em vários estados do país com ramificações na América Latina. Atuavam há mais de quinze anos e roubaram o equivalente a cinco bilhões de reais. Nem consigo imaginar tal quantia, afirmo que não sou boa de números, mas tenho uma boa noção de que seja uma pequena fortuna. O grupo chegou a abrir um restaurante em São Paulo para legalizar o dinheiro do roubo, também penhoravam algumas jóias, roubadas, em bancos. Há ousadia em nos desafiar nesse comportamento, reflexo da crença na impunidade e ineficiência do poder repressivo.

O que me chamou a atenção na notícia nem foi o montante roubado, pois atualmente banalizamos milhões, bilhões com certa facilidade. Causou-me certo espanto foi o relato de que de uma das mansões assaltadas foram subtraídas algumas bolsas femininas, aquele objeto em que carregamos nossos badulaques. Pois bem, o preço de uma das bolsas roubadas é de R$ 60.000,00. Seria de ouro, de diamante? O que justifica tal valor? O detalhe é que na mansão assaltada foram furtadas três bolsas, totalizando o pequeno valor de R$ 180.000,00, ou seja, o equivalente a um imóvel ou até dois imóveis dependendo da região do país.

No mesmo dia, no final da tarde fui à academia como tenho feito, religiosamente, quase que todos os dias, afinal a saúde do corpo precisa de cuidados. Sai do carro e caminhei um pouco. No percurso passei por um grande supermercado que tem vários containeres na parede lateral utilizados para depositar lixo. Como passo com certa frequência no local, vejo muitos pães e outras comidas desperdiçados nos arredores desse local.

Isso me incomoda porque fui educada para não colocar comida fora e considero desrespeitoso quando muitos ainda não fazem uma refeição ao dia, que dirá três.

Quando cheguei próximo do lixo, vi três mulheres a vasculhá-lo. Procuravam restos de comidas para si e quem sabe para algumas bocas famintas que as aguardavam, com certa ansiedade e esperança, pois naquele final de dia teriam algo para enganar o estômago vazio.

Não pude deixar de lembrar Manuel Bandeira com seu poema O Bicho (1947).

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Eu apenas mudaria o final desse poema para dar a ele a atualidade do fato presenciado, “o bicho, meu Deus, eram mulheres”.

Poema clássico, que sobreviveu ao tempo de setenta anos. O poema chegou à terceira idade e não envelheceu em seu conteúdo, continua a denunciar nossa realidade vergonhosa e doída de se ver, de que alguns vivem das sobras dos que muito tem e que com frequência até se permitem desperdiçar.

Que dia! Pensei comigo, enquanto algumas mulheres possuem bolsas de valores astronômicos outras revolvem lixos da capital para sobreviverem. Esse é o mundo habitado e conduzido por seres que se autodenominam ‘civilizados’. O que seria do Planeta se não fôssemos indivíduos dotados de inteligência? Será mesmo que temos consciência de que estamos de passagem? De que a finitude nos espreita? Será que a fome no estômago dos desafortunados dói menos? O frio é menos frio? A dor é menos intensa?

Está difícil de acreditar que a humanidade ainda conseguirá se humanizar. É urgente colocar-se no lugar do outro. Façamos a experiência de ficarmos um dia sem comer. Talvez isso nos torne mais solidários, compreensivos e entendamos um pouco aqueles que, para não morrerem de fome, buscam no lixo seu sustento. Afinal, o único bem que realmente temos é a vida.






Psicóloga da Clínica Ser
Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF)
Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB)
Autora do livro No cinema e na vida: a difícil arte de aprender a morrer. E-mail: emilia.bottini@gmail.com
 

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