As dores
da alma dos excluídos no Brasil
(Adalberto
de Paula Barreto)
O
Contexto de nossa ação:
Assim
como muitos países do mundo recebem refugiados de guerra, as grandes cidades do
Brasil recebem refugiados que fogem de uma luta desigual contra as forças da
natureza, no árido sertão nordestino e vitimados por uma política econômica que
concentra poder e riqueza, excluindo a grande maioria das oportunidades de
desenvolvimento e da partilha de bens materiais ou culturais.
Os
movimentos migratórios, agravados pelas secas cíclicas, pela interrupção e
vulnerabilidade das políticas agrícolas provocam o empobrecimento econômico,
cultural, do “savoir -faire” e dos laços sociais e da imagem de si mesmo. Estes
migrantes são personagens de uma batalha silenciosa, invisível fruto da
política econômica injusta e excludente. Essa batalha, sem armas aparentes,
deixa marcas profundas no corpo e na alma do homem. A chegada às grandes
cidades acontece na mais profunda desolação. A cidade não os acolhe, não abre
suas portas para recebê-los. Eles chegam, mas não a penetram, permanecem na
periferia formando um cinturão de miséria.
Logo
descobrem que os sonhos tornam-se pesadelos. Inicia outra série de problemas
bem mais dramáticos: onde morar? Como construir casa se não há terra nem meios?
Como alimentar e nutrir seus filhos? Como conseguir emprego, se não têm
capacitação profissional? Como cuidar dos filhos, se precisam sair de casa á
busca de trabalho e comida? Essas questões ilustram a “via cruxis” de
indivíduos e famílias no quotidiano. São populações abandonadas pelos
governantes, denegadas por uma economia selvagem que as excluem literalmente da
partilha.
Para
poderem se inserir na grande cidade têm que romper com barreiras invisíveis,
verdadeiras muralhas de indiferença, hostilidade que tentam manter essas
populações afastadas da vida social. Neste contexto profundamente diferente, a
nova vida social e política e as atividades econômicas, por um lado, funcionam
como elementos que agridem a identidade cultural e atingem a identidade pessoal
provocando desagregações, desajustes e desequilíbrios. Por outro lado,
desencadeiam um esforço criativo e desejo de inserção social muito grandes, por
meio de inúmeros cultos religiosos ou movimentos associativos. A conseqüência
imediata dessa exclusão é a cisão da sociedade em duas grandes correntes
humanas:
a) uma,
fixada na terra com seus imóveis e mansões bem protegidas, ostentando riquezas
e bens visíveis;
b) outra,
como fantasmas semivisíveis que ninguém quer ver, perambula de lá para cá,
dentro do espaço urbano, movendo-se impulsionada pelas necessidades básicas, em
busca de alimento, moradia, emprego constituindo-se na sociedade dos descolados
sociais, ou das “almas penadas”.
Na cultura
brasileira o termo “alma penada” define a situação de pessoas que morrem e não
têm para aonde ir, que não conseguem seguir o destino de todas as almas após a
morte, e vagam entre os vivos, sofrendo e gemendo entre a terra e o mundo
espiritual. São as almas penadas, que tentam, sem sucesso, o contato, o diálogo
com o mundo dos vivos (Barreto 1994).
Durante
estes anos de trabalho com essas populações, nós podemos compreender o drama do
homem das favelas das grandes cidades brasileiras. Ser migrante favelado é algo
tão angustiante, tão frustrante quanto ser “alma penada” buscando contato com
os vivos, sem jamais conseguir ser visto ou ouvido.
Talvez a
familiaridade do termo junto às classes pobres traduza o real sentimento de uma
vida sem reconhecimento e sem direito a espaços que garantam o desenvolver
pleno da existência como pessoas, como cidadãos. A alma penada seria o
protótipo das doenças da alma do século XXI?
Nossa
intervenção:
Há 21
anos, o Departamento de Saúde comunitária da Universidade Federal do Ceará, com
o apoio do Centro de Direitos Humanos do Pirambú - CE. e do Movimento Integrado
de Saúde Mental Comunitária, desenvolve um trabalho de promoção em Saúde Mental
Comunitária, na segunda maior favela do Brasil, a favela do Pirambú, com 280.000
habitantes, situada na cidade de Fortaleza, nordeste do Brasil, metrópole com
dois milhões de habitantes.
A ação da
Universidade, no início, era voltada para as intervenções pontuais de
indivíduos e famílias em sofrimento psíquico, cujos direitos de cidadãos tinham
sido violados. Convidado a intervir como psiquiatra na favela, me dei conta de
que o arsenal quimioterápico da psiquiatria moderna não podia ser a única arma
na luta contra os efeitos de um contexto social desagregador e mutilador de
indivíduos.
O uso
indiscriminado tornava ainda mais caótico o estado psíquico de muitos usuários
e os mesmos psicotrópicos usados para tratar distúrbios mentais eram usados
indiscriminadamente nas insônias rebeldes e nos desequilíbrios emocionais ou
até para aplacar o choro das crianças famintas. Esse contexto caótico exigia a
criação de novos paradigmas capazes de estimular uma ação terapêutica criativa
e efetiva, que nos permitisse:
1.
Perceber o homem e seu sofrimento em rede relacional;
2. Romper
com o modelo do “salvador da pátria”, do técnico iluminado, que traz as
soluções e reforça um sistema de dependência;
3.
Identificar não só a extensão da patologia, mas também o potencial daquele que
sofre;
4. Como
fazer o grupo acreditar em si, na sua competência;
5. Como
resgatar o saber dos antepassados e a competência adquirida pela própria
experiência de vida;
6. Como
ultrapasssar o unitário para atingir o comunitário;
7. Fazer
da prevenção, uma preocupação constante e tarefa de todos;
Para
atuar de forma transformadora nesta dura realidade social, começamos a realizar
encontros semanais entre as pessoas mais carentes de auxílio psiquiátrico, na
favela, e acabamos criando nossa própria forma de trabalho, a Terapia
Comunitária (Barreto 1994).
Em espaço
livre, à sombra de um pé de cajueiro, reuniam-se as pessoas que estavam vivendo
uma situação de crise para falar de suas angústias, problemas, sonhos, dramas e
necessidades. Criamos então o Movimento Integrado de Saúde Mental Comunitária,
Organização Não Governamental, sem fins lucrativos e com base comunitária, que
passou a oferecer, ao longo de 18 anos de trabalho, algumas opções terapêuticas
à população: arte terapia – massagem anti-estresse, fitoterapias - Terapias
comunitárias, sessões de resgate da auto-estima (Barreto 1994). Nossa ação
procurava suscitar a capacidade terapêutica do próprio grupo ajudando o
indivíduo a descobrir as implicações humanas e contextuais do quadro de
sofrimento em que viviam.
Desta
forma, nossa intervenção permitia a tomada de consciência do indivíduo em
sofrimento psíquico dentro do corpo social, estimulando a transformação de um e
de outro, tratando assim a saúde coletiva, e recuperando, com ações
individuais, a saúde do corpo social.
Nesses
anos de trabalho como psiquiatra, na favela, temos treinado cerca de 7.500
lideranças comunitárias que atuam em 27 estados do Brasil para assumirem o
papel de mediadores dos conflitos, conhecidos como terapeutas comunitários.
Eles atuam em comunidades carentes, nas escolas, postos de saúde, programas de
saúde da família e em prefeituras como São Paulo, Londrina-Pa e Sobral-Ce.
Trata-se
de um programa piloto na área de saúde comunitária que articula o saber
científico com o saber popular na perspectiva de superação dos conflitos e na
construção de redes sociais de apoio às pessoas em crise.
Nossa
experiência tem dado a convicção de que estas “doenças da alma” podem ser
tratadas pelo próprio grupo. Eles têm problemas, mas tem também as soluções e
precisam ser estimulados a tomarem consciência do potencial humano e cultural
que possuem.
É no
próprio grupo, trocando experiências, refletindo, se apoiando, reforçando os
laços afetivos e os valores da cultura local que o tecido social vai se
consolidando, que a consciência social vai despertando, descobrindo
coletivamente as saídas possíveis para a superação dos problemas, facilitando a
inserção social em novo contexto.
Nós nos
identificamos com o método (RAP)* Pesquisa-Ação-Participação, que temos adotado
há vários anos, definido como “rejeição do monopólio universitário sobre a
produção do conhecimento e fazendo apelo aos saberes da base, na base e para a
base”…
*-Atelier Nord Sud de
méthodologie en analyse, Réseau Culture Bruxelles mars 1997
As doenças
da alma
Nestes 21
anos de trabalho com as populações de excluídos no Brasil destacamos três
categorias que atingem de forma contundente os indivíduos:
1.
Disturbios do abandono.
2.
Disturbios da insegurança.
3.
Distúrbios da baixa auto-estima.
1-ABANDONO:
São
populações inteiras, mergulhadas em forte sentimento de abandono e orfandade.
Não fora um desejo muito forte de inserção social evidenciado pelas inúmeras
associações de bairro e diversos cultos religiosos, a situação poderia ser bem
mais caótica.
As
agressões contextuais, como o desemprego, a falta de habitação, saúde,
educação, aceitação social, a falta de uma política de inserção social mais
abrangente, constituem–se no maior atentado á vida em sociedade.
Indivíduos
e famílias entregues à própria sorte são levados a construir os próprios
mecanismos de sobrevivência, modelos de funcionamento que só consideram o
"aqui e agora" das necessidades fundamentais da existência humana,
tais como saciar a fome, a sede, buscar segurança.
Os efeitos
do sentimento de abandono são visíveis em todos os níveis:
-em nível
individual: a própria aparência física: bocas desdentadas, rugas precoces,
cabelos em desalinho;
-em nível
familiar: mulheres abandonadas pelos maridos assumindo a responsabilidade de
alimentar sozinha a família, famílias vivendo nas ruas, crianças abandonadas
cheirando cola,
-em nível
social: a própria configuração geográfica da favela, casas construídas com
pedaços de papelão, caixas, madeiras nos reinviam a pedaços de existência de
indivíduos, famílias e vidas.
Cada
família, uma história, uma seqüência de sofrimentos, sentimento de exploração,
de abandono e injustiça. Cada um parece prisioneiro de acontecimentos e, muitas
vezes, emprega toda a sua energia para se defender do sentimento de estar
“possuído” por forças ocultas, por espíritos dos mortos.
Talvez o
“encosto,” forma popular de possessão, nos fale de perda de liberdade de vida,
da perda da autonomia e do estado de dependência do outro, das pressões sociais
do novo contexto (Barreto 1988).
Enquanto
a dinâmica da urbis agrega pessoas em torno de lutas materiais específicas,
como habitação, alimentação, saúde, através de associações e sindicatos, outras
concentram as atenções no mundo secreto da espiritualidade.
São os líderes
espirituais, os curandeiros que, no anonimato dos centros, no silêncio da
noite, procuram com seus rituais, alimentar a fé que reanima a esperança de
dias melhores, oferece a possibilidade de pertencer a uma família espiritual, e
transforma o homem sofrido e solitário em pessoa pertencente a uma nova
família, restituindo-lhe a alegria de viver.
Para
muitos, ser devoto de santo católico, filho de algum orixá africano ou até
mesmo se deixar incorporar por um espírito de luz permite que esses indivíduos
abandonados possam sentir a plenitude de um sentimento quase esquecido, o de
fazer parte de nação de luz, na qual os governantes os acolhem com respeito e
afeição.
Aqui a
cultura emerge como sustentáculo de uma identidade ameaçada pelo novo contexto.
Tal qual a teia de aranha, a cultura é para o indivíduo o que a teia é para a
aranha: ela agrega, une, alimenta e fortalece os vínculos que conferem a
pertença.
Os mais
jovens formam gangues, verdadeiras “internetes sociais,” como estratégia para
suprir o sentimento de anomia, abandono e o desejo de inserção a grupo que lhe
confira o sentimento e pertença.
Outros,
ainda, geralmente os mais sensíveis, padecem de depressão, crises nervosas,
alcoolismo, drogas, prostituição.
O que é
mais dramático é que o sofrimento que padece o corpo e a família dos excluídos,
no quotidiano, atinge violentamente as almas desses corpos.
Estabelece-se
assim a guerra de valores em que o espírito das referências ancestrais
fortemente paternalista se chocam com as novas referências do mundo urbano onde
cada um tem que se virar para sobreviver.
É neste
contexto que muitos se mobilizam para não perder a guerra interior, para manter
viva a esperança, a crença em valores, para poder salvaguardar a identidade
ameaçada, no novo mundo que exige adaptações rápidas.
Os
espíritos cultuados nos diversos cultos, tornam-se em grandes aliados desses
homens. Sacerdotes e curandeiros são procurados para ajudá-los a resolver os
conflitos da alma.
Os
curandeiros, guardiões da identidade cultural, através de cultos religiosos e
rituais, tentam reanimar a alma desanimada pela dureza da vida.
Neste
sentido, os cultos religiosos,católicos, espíritas, afro-brasileiros ou outros,
funcionam como verdadeiras UTIs existenciais, para o homem sofrido, abandonado.
Aqui a cultura tenta dar suporte, onde as instituições falharam.
Curando a
dor da alma, conforta-se o corpo. Nestes contextos, os cultos tornam-se muito
mais espaço de catarse coletiva, para reduzir o estresse, do que espaço de
reflexão ou de tomada de consciência das implicações históricas e psicológicas
do sofrimento.
Alguns
cultos são terrivelmente agressivos, sobretudo algumas igrejas neo-evangélicas
e pentecostais, que exigem de seus fiéis a recusa das crenças culturais.
Trata-se de ruptura com o modelo referencial interiorizado há gerações,
verdadeira destruição de identidades, de pertenças fundamentais, substituídas,
por um falso EGO, construído sobre valores de uma religião da qual deve esperar
tudo, e que se afirma pela negação do outro, do diferente.
Ela se
impõe, o que reforça o sentimento de dependência, de submissão sectária.
No
entanto, temos observado que outros cultos, como a umbanda, são muito mais
respeitosos da diversidade cultural e oferecem a possibilidade de acolhimento,
na neofamilia, na qual coabitam múltiplas imagens identificatórias, que podem,
pelo respeito da cultura de base, se apropriar de modelo comunitário mais
tolerante.
A doença
do abandono é a porta de entrada dos cultos. De cliente, torna-se adepto. A
explicação da origem de todo mal ou malestar é atribuída aos maus espíritos,
que devem ser exorcizados através de rituais. Sob o pretexto de exorcizar o
mal, exorciza-se o homem de si mesmo, de suas crenças, de seus valores
ancestrais, do senso critico. Trata-se de verdadeiro culto de esvaziamento do
homem de sua identidade cultural.
Estamos
convencidos de que enquanto os indivíduos não entenderem as implicações humanas
e contextuais de seus sofrimentos e não tiverem o senso de co-responsabilidade,
não haverá desenvolvimento sustentável possível.
2-INSEGURANÇA:
O clima
de insegurança é um fermento de violência, de divisão, de fraturas, de rupturas
no seio da sociedade, estimulada e alimentada pelo medo e ações irracionais
geradas pela insegurança. Nas favelas, o clima de violência, roubo, crimes têm
se intensificado com o desemprego. O desejo de sobrevivência é bem mais forte
levando indivíduos e grupos a se organizarem para roubar e pilhar bens de
primeira necessidade ou bens simbólicos.
Esses
indivíduos ou grupos organizados começam a impor seu poder gerando um clima de
insegurança e medo nas pessoas de ambos os grupos sociais.
As casas
tornam-se verdadeiras prisões, com grades de ferro para garantir a própria
segurança, os moradores acabam construindo verdadeiras prisões para si mesmos.
Trancadas em suas casas, as pessoas tornam-se reféns da violência.
Os mais
pobres, os que moram nas favelas, vivem sobressaltados, com medo de perder um
chinelo, uma peça de roupa, o botijão de gás, o que é ainda pior, de serem atingidos
por alguma bala perdida durante as brigas de gangues.
O clima
de desconfiança vai, aos poucos, quebrando os vínculos de solidariedade e
acolhida, tão característicos das populações interioranas, gerando conflitos,
intrigas, estupros, agressões contra vizinhos.
Os
sintomas do distúrbio da insegurança atingem a todos: os jovens perdem o
direito de circular livremente na cidade, onde as gangues já delimitaram seus
territórios onde nenhum outro individuo de outra comunidade pode circular sem
represálias.
As
pessoas idosas são assaltadas quando recebem no banco, o dinheiro da
aposentadoria. A ausência de uma policia cidadã que não inspira confiança torna
o quadro ainda mais dramático. Em resposta a esse contexto, a cada dia, fica
mais significativo o números de rituais de proteção usados, que vão desde o uso
de símbolos protetores religiosos: como a cruz,os salmos, as medalhas, até o
uso de cães e armas de fogo para sair às ruas.
A
insegurança é o reflexo das condições sociais que se agravam a cada dia com a
falta de emprego. Este clima de ameaça e de hostilidade leva os indivíduos a
desconfiarem uns dos outros identificando qualquer pessoa desconhecida como
possível inimigo. Com isso, praticam-se constantemente atos de discriminação, e
exclusão contra o outro.
Existe
também a cultura da violência que é estimulada e vivificada por uma
contracultura, expressa nos filmes e programas de comunicação de massa, nos
jogos de guerra e videogames que, transmitidos à nossa imaginação, sem
critérios ou legislação adequada, reforçam a idéia de que o herói é aquele que
consegue tudo através do uso da violência e da força contra o outro.
O espaço
da família se vê invadido pela violência, na forma dos conflitos conjugais, na
violência contra a mulher, nos maus tratos à criança.
No
Brasil, ela toma contornos ainda mais dramáticos com o surgimento de programas
televisivos que estão sempre mostrando cena de crime ao vivo com todas as cores
da violência e crueldade. Se a segurança como fator social é necessária para que
se possa inspirar a confiança recíproca dos homens, estar seguro e poder
confiar em si mesmo, na sua capacidade de dominar, de comandar os instintos,
transformando-os em força para viver,são necessidades básicas para a paz do
indivíduo e a paz social que nele se origina . O que é preocupante é que o
clima de insegurança pode ser fermento de violência e divisão no seio da
sociedade, pelos medos e ações irracionais que ocasiona.
3- A
BAIXA AUTO-ESTIMA:
É
evidente que, além da violência e do abandono, a exclusão social gere
sentimento de menos valia, de desvalorização do indivíduo. Soma-se a isso a
força dos estereótipos e preconceitos sociais reforçados por uma educação que
não leva em conta os valores próprios do indivíduo. Estes elementos
contextuais: educação doméstica repressora, os estereótipos sociais que
desvalorizam a pessoa acabam por anular, por dilapidar o patrimônio íntimo do
homem: A confiança em si.
Desconhecem-se
os dons inatos, aptidões e capacidades naturais. Desvalorizado, caso não consiga
atingir os padrões intelectuais exigidos, introjeta o sentimento de
incapacidade, e passa a não acreditar mais em si mesmo, se autoexclui, não se
sentindo mais merecedor da felicidade, perdendo aos poucos a condição de amar e
ser amado. Esse sentimento de descrença, em seu próprio potencial, se manifesta
em vários níveis:
A)
individual: leva as pessoas a calar sentimentos e emoções mais profundos, a
apresentarem assim um alto índice de tensão psíquica e somatizações físicas ;
B)
familiar: uma educação repressora baseada em xingamentos em que a criança,
desde cedo, é desvalorizada, é vista como incapaz criando um campo fértil para
nutrir a insegurança e o sentimento de desvalorização.
C)
social: alto índice de abandono de empregos por se sentirem incapazes
O quadro
mais dramático, dentro de uma favela, não é a miséria retratada nos casebres, e
sim a miséria oculta no íntimo das criaturas. O sentimento de incapacidade e de
descrença nos próprios potenciais é que vem reforçar a marginalização dos
indivíduos no corpo social que, muitas vezes os faz perder chances de trabalho
e inserção social que lhes aparecem, pois inconscientemente eles próprios auto
boicotam todas as oportunidades para crescer e vencer.
Paralelamente
às sessões de Terapia Comunitária, temos procurado minimizar este quadro
criando grupos de reforço da auto-estima, através de técnicas e dinâmicas
adaptadas às condições, procurando despertar o potencial humano amordaçado e
colocá-lo a serviço de uma dinâmica individual e coletiva, levando as pessoas a
se tornarem sujeitos da história e responsáveis pela existência.
Reflexões:
As
síndromes relativas ao abandono, insegurança e baixa auto-estima constituem um
quadro preocupante em escala nacional. Constituem fermentos de violência e
divisão no seio de uma sociedade, pelos medos e ações irracionais que podem
ocasionar. Esse clima de tensão, desespero e muita angústia só pode desaparecer
com a maior presença de instituições comprometidas com o bem comum. Quando as
instituições estão ausentes ou são inoperantes, os indivíduos criam suas
próprias regras e leis e tende a imperar a autodefesa, o salve-se quem puder, o
que potencializa cada vez mais a violência fratricida.
Faz-se
necessário criar instrumentos aptos a estimular uma “ação criativa” nos
indivíduos que vivem nestes contextos anômicos. Eles devem se apoiar em valores
individuais próprios e em valores culturais anteriormente desqualificados. Em
nossa experiência, os novos instrumentos só podem ser concebidos num contexto
grupal, participativo e comunitário.
Nossa
experiência tem nos firmado na convicção de que a solução está no coletivo e em
suas interações, no compartilhar, nas identificações com o outro, no respeito
às diferenças. Portanto é do grupo que devem emergir as soluções adaptadas.
Essa perspectiva exige, dos profissionais, uma tomada de distância critica dos
modelos explicativos do sofrimento, e das intervenções que implicam, muitas
vezes em condutas lineares e redutoras (Exemplo do modelo biomédico que
supervaloriza a quimioterapia ou modelo social que impõe, do exterior, ações
tanto educativas como repressivas.).
Os
profissionais devem fazer parte dessa construção. Ambos tiram benefícios: A
comunidade gerando autonomia e inserção social e os terapeutas se curando de
seu autismo institucional e profissional, bem como de sua alienação
universitária. Uma política de Autopromoção do indivíduo, como fator
transformador do corpo social, deve permitir a ruptura de modelos
paternalistas, que geram dependência e castra a criatividade.
Não se
trata de ficar somente à espera de investimento financeiro, mas sobretudo de
investir no capital sócio-cultural do indivíduo excluído, para permiti-lo sair
do lugar de objeto vítima, para um lugar de sujeito, ator de seu destino para
tornar-se co-responsável na construção de uma sociedade mais igualitária, seja
capaz de fazer suas escolhas criticas em busca de sua autonomia.
Investir
em políticas sociais capazes de promover e consolidar os laços afetivos e
sociais, capazes de fazer surgir um sentido de pertença cultural inscrita numa
comunidade de vida. Sair dos espaços para investir mais nos laços, ultrapassar
o modelo individual, onde a solução de todos os males é esperada de um único
individuo externo ou do político.
Precisamos
estimular movimentos participativos em que cada um dê sua contribuição, o que
permite paralelamente ao grupo desenvolver-se no conjunto como um todo. Como
foi dito para o subdesenvolvimento, a perda da estima de si é um estado de
privação em relação ao próprio saber. É importante iniciar e desenvolver os
espaços de restauração identitário onde a palavra pode se liberar. Os saberes
científicos devem reconhecer e integrar, enfim, os saberes ditos populares. A
restauração da estima de si dos excluídos constitui a pedra angular da luta
contra as doenças da alma do século XXI.
Referencia
Bibliografica:
1-Barreto
A.P. "UN MOVIMIENTO INTEGRADO DE SALUD MENTAL COMUNITARIA EN FORTALEZA,
BRASIL" In Boletin Oficina Sanitaria Panamericana 117 (5), 1994
2-Barreto A. P.
"L'ARAINEE ET LA COMMUNAUTE TISSENT LEURS TOILES" in Transitions nº
37 ( Rites culturels et Droits de la Personne) 135-142 Paris 1994
3-Barreto A. P. "LES
AMES EN PEINE DANS LA VILLE" in Transitions nª 37 (Rites culturels et
Droits dela Personne) 127-134 Paris 1994
4-Barreto
A. P. ASPECTS CULTURELS SPECIFIQUES DU SYNDROME DE POSSESSION ET LA RELATION
THERAPEUTIQUE Conferencia no 3º Seminaire inter-culturel Henry collomb na
França em outubro 1988.
Nenhum comentário:
Postar um comentário