domingo, 9 de fevereiro de 2014

REPORTAGEM SOBRE TCI - HUMBERTO REZENDE PARA O CORREIO BRAZILIENSE


A cura pela solidariedade

Dom, 05 de Outubro de 2008 10:47 Administrador

 

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Ministério da Saúde inclui grupos de terapia comunitária em seu plano de atenção básica. Técnica é baseada em conversas e troca de experiências entre moradores de comunidades carentes de todo o país. Discussões vão do desemprego à violência doméstica






Humberto Rezende
Da equipe do Correio Braziliense
Sentadas em roda, na entrada de um posto de saúde de São Sebastião, elas iniciam o ritual que repetem todas as manhãs de quarta-feira, sem falta. Estão ali para conversar, desabafar, trocar experiências. Antes, porém, a coordenadora do grupo, Marilene Barbosa, lembra as regras a serem respeitadas: ouvir em silêncio, não julgar o que a outra pessoa diz, não dar conselhos, falar sempre de si e não da outra e, sempre que possível, citar canções, versos e provérbios que se relacionem com o assunto discutido.
Todas de acordo, é iniciada mais uma sessão de terapia comunitária, técnica surgida há 21 anos no Ceará e que, desde então, se espalhou por todo o país e chegou à Europa.

Definida por seu criador, o psiquiatra da Universidade Federal do Ceará (UFC) Adalberto Barreto, como “um espaço de acolhimento e escuta” (leia entrevista na página 22), a terapia comunitária acaba de ser abraçada pelo governo federal como parte da estratégia de atenção básica à saúde. Por meio de um convênio entre a UFC e o Ministério da Saúde, 1,1 mil profissionais das equipes do Programa Saúde da Família (PSF) serão capacitados, até março de 2009, para aplicar a metodologia em comunidades carentes de todo o país — exatamente o público para a qual a terapia foi desenvolvida.
Nas sessões, o terapeuta comunitário, ou facilitador, estimula os participantes a contar os problemas que os afligem. Depois das exposições, cada pessoa do grupo vota em um dos problemas apresentados. Aquele que gerar mais interesse será debatido. Além da pessoa que trouxe a questão, falam também aqueles que já passaram por uma situação parecida e podem dizer como lidaram com ela. Ao final, ocorre o ritual de agregação, quando, de mãos dadas, todos dizem o que estão levando da experiência vivida. Muitos grupos utilizam canções, que servem para encorajar os participantes a enfrentar seus problemas.

“Não se trata de psicoterapia, mas de uma rede solidária de apoio. A comunidade tem seus problemas, mas também tem as soluções”, resume a psiquiatra Maria Henriqueta Camarotti, uma das diretoras do Movimento Integrado de Saúde Comunitária do Distrito Federal (Mismec-DF), primeiro pólo a formar grupos de terapia comunitária fora do Ceará, desde 2001. Hoje, graças à entidade, cerca de 40 rodas funcionam no DF.

Prevenção
A metodologia tem atraído a atenção de médicos e psicólogos de todo o país, que se esforçam para multiplicar a experiência. Atualmente, são 36 pólos de formação nas 27 unidades da federação, que já treinaram 12,5 mil terapeutas comunitários — apenas no Pólo Quatro Varas, em Fortaleza, são atendidos, em média, 3 mil pacientes por mês (cerca de 500 mil atendimentos desde 1986). Há seis anos, especialistas brasileiros têm ajudado na disseminação da técnica pela Europa. Já foram criados três pólos no continente — dois na França e um na Suíça.

Ampliar a oferta no país é o principal objetivo do convênio assinado pelo Ministério da Saúde com a UFC, que dá prioridade a municípios com cobertura de pelo menos 30% do Programa Saúde da Família — e, por isso, não inclui o Distrito Federal (hoje com apenas 6,51% da população atendida pelos agentes comunitários de saúde). “Nossa intenção é que a formação dos agentes comunitários não se encerre nesse primeiro momento, que seja um trabalho permanente”, explica a coordenadora da Política de Práticas Integrativas e Complementares do Sistema Único de Saúde (SUS), Carmen de Simoni.
 “É um instrumento para que o agente melhore o trabalho que presta à comunidade”, completa.

Atualmente, não só agentes de saúde atuam como facilitadores. Os pólos espalhados pelo país já capacitaram líderes comunitários, enfermeiros, agentes pastorais, psicólogos e médicos, entre outros voluntários. No grupo, reina a convicção de que o método é um trabalho preventivo de saúde. De fato, um estudo de impacto realizado pela UFC em 2005 e 2006, com 12 mil questionários em 12 estados brasileiros, mostrou que 88,5% das demandas foram resolvidas dentro da roda de terapia. Somente 11,5% das pessoas precisaram ser encaminhadas para os serviços de saúde. Os dados mostram ainda que os temas mais freqüentes são estresse e emoções negativas (26%), conflitos familiares (19,7%), dependência de álcool e outras drogas (11,7%) e questões ligadas ao trabalho (9,6%).

Voluntários
Em São Sebastião, as demandas são muito parecidas com as apontadas no levantamento. “O que a gente mais discute são problemas como a falta de emprego e a violência doméstica”, diz Marilene, que divide seu tempo entre o trabalho como secretária na Câmara dos Deputados e a coordenação de grupos na cidade. Ela se tornou uma facilitadora depois de se encantar com os benefícios da terapia, ao participar de um grupo no Paranoá, onde mora. “Eu era uma pessoa fechada e fui ganhando confiança, me sentindo mais segura”, lembra.

Hoje, são seis grupos em São Sebastião, que contam com a presença assídua de mulheres como a diarista Francisca Maria de Sousa, 41 anos. Curiosa, como ela mesma se define, Francisca logo quis saber do que se tratava o tal grupo que estava sendo criado perto de sua casa. Participando das reuniões, percebeu que não tinha tido até então a chance de lidar com a dor de duas perdas que sofreu — as mortes da mãe, em 1995, e do primeiro filho, em 2000. “Mesmo tendo meu marido, que conversa muito comigo, percebi aqui que ainda sentia uma angústia muito grande”, conta.

Hoje, Francisca se diz feliz. A segunda filha, Laura, já completou 6 anos, e o casamento com Osmar Mendonça, 38, vai muito bem. E quando surge algum problema, ela sabe onde poderá desabafar e buscar uma saída, com a coragem que aumenta a cada dia. “Quando queremos alguma coisa, temos que trabalhar por ela”, ensina.


Entrevista - Adalberto Barreto

Psiquiatra da Universidade Federal do Ceará fala sobre técnica criada depois de visitar favela de Fortaleza

Humberto Rezende
Da equipe do Correio Braziliense
Há 21 anos, o psiquiatra Adalberto Barreto começou a receber, na Universidade Federal do Ceará, onde trabalhava, visitas de moradores da favela Pirambu, em Fortaleza. Eram pessoas com problemas emocionais dos mais diversos tipos — de relacionamentos à dependência de álcool — encaminhadas pelo irmão do médico, o advogado Airton Barreto, que fazia consultorias de forma voluntária na comunidade.

Percebendo que não daria conta de atender todos que precisavam, Adalberto reuniu um grupo de alunos e foi até a favela, em busca de uma forma eficaz de atendimento. O convívio com aquelas pessoas fez com que uma nova técnica, baseada na conversa, escuta e troca de experiências, fosse moldada. Surgia a terapia comunitária, trabalho encarado por Adalberto como preventivo, na qual a própria comunidade se ajuda a enfrentar os desafios da vida.

Em entrevista ao Correio, o criador da terapia comunitária fala sobre o trabalho que iniciou e defende o poder curativo da conversa e da escuta: “A palavra é o remédio, o bálsamo, a bússola para quem fala e para quem ouve”.

“A palavra é o remédio”


Qual o objetivo da terapia comunitária? E por que ela funciona?
A terapia comunitária surgiu como um projeto de extensão da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Trata-se de uma ação cidadã que transcende classes sociais, profissões, raças, credos, partidos. Cada um partilha seu saber, sua competência, integrando saberes e construindo uma grande rede solidária. São agentes comunitários de saúde, agentes pastorais, lideranças comunitárias, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, advogados, artistas, sacerdotes, pastores, curandeiros, médicos, educadores, enfermeiros... A comunidade age onde a família e as políticas sociais falham. Funciona porque a comunidade descobre que ela tem problemas, mas também tem as soluções. E aos poucos vai descobrindo que a superação não é obra particular de um indivíduo, de um iluminado, de um governo, ou de um terapeuta, mas é da coletividade. Na terapia comunitária, a palavra é o remédio, o bálsamo, a bússola para quem fala e para quem ouve. É da partilha de experiência entre as pessoas que se alivia o sofrimento das dores da alma, e se vislumbram novas pistas de superação dos problemas.

O que esses anos de trabalho ensinaram ao senhor sobre as pessoas? A técnica parece ser uma espécie de voto de confiança na capacidade do ser humano de se reunir e se ajudar.
Esses 21 anos de trabalho têm mostrado que a academia não tem a hegemonia da produção do conhecimento. Ela produz um conhecimento imprescindível e necessário, mas a experiência de vida também produz conhecimento. A carência gera competência. Geralmente, damos melhor aquilo que não recebemos. O enfrentamento das dificuldades produz um saber que tem permitido aos excluídos sobreviverem através dos tempos. Eles dispõem de mecanismos próprios para superar as adversidades, e os sofrimentos e superações expostos e refletidos pelo grupo promovem a criação gradual de consciência social. Permitem que os indivíduos descubram as implicações sociais na gênese do sofrimento humano. Geralmente, atribuímos nossas competências a cursos que fizemos ou livros que lemos, e jamais a algo que vivenciamos. Nós só nos empoderamos quando compreendemos e aceitamos ser sujeito ativo aprendendo com a nossa história.

Por que a terapia comunitária atrai tantos profissionais interessados em difundí-la?
Os modelos de intervenções terapêuticas são, em sua grande maioria, voltados para o atendimento individual. Nas universidades, se aprendem técnicas para serem aplicadas em consultórios, tendo o indivíduo como paciente ou, no máximo, incluindo a família. Existe uma grande pobreza em técnicas que privilegiam o grupo. A terapia comunitária, de certa forma, preenche essa lacuna, oferecendo aos profissionais um instrumento de intervenção coletiva.

Em muitas comunidades, os líderes religiosos são muito presentes. Como fazer com que a busca por conforto não seja só uma repetição dos sermões das igrejas?
Identificamos pelo menos duas grandes linhas de ação que norteiam as ações dos cuidadores. Primeiro, existe o modelo do salvador da pátria, que privilegia a falta, o negativo, as carências, os pecados. Essa abordagem gera um sentimento de insegurança e culpabilidade e leva o indivíduo a buscar um salvador, um guru, um doutor, uma igreja capaz de libertar do mal e se salvar. A solução vem de fora, o que deixa o grupo refém de suas lideranças. Já o modelo co-participativo, que propomos na terapia comunitária, se baseia na competência das pessoas. Valorizamos a autonomia e a co-responsabilidade. Cada um é parte do problema e parte da solução. Por isso, algumas regras estruturam as rodas: não dar conselho, não fazer sermão nem discurso, fazer silêncio quando o outro fala, não julgar, falar de si usando eu e propor músicas, piadas ou poesias em função da temática conduzida. O terapeuta comunitário não faz a terapia para a comunidade, ele faz a sua terapia com a comunidade. Ambos tiram benefícios. Os profissionais vão se curando de sua alienação acadêmica, universitária ou religiosa, e as pessoas se tornam mais autônomas e menos dependentes de psicotrópicos, dos profissionais e das instituições.


 

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