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TERAPIA COMUNITÁRIA: COMO TOCAR O CORAÇÃO DAS PESSOAS
*Psicóloga Rosana Ferrari - Psicóloga Mariza Bregola de Carvalho
Qual a diferença entre a Terapia
Comunitária e uma roda de conversa? Qual a diferença entre a Terapia
Comunitária e outros grupos de autoajuda?
Como percebemos que uma sessão
foi de fato terapêutica? E como sabemos que a sessão foi mais "pedagógica
" do que terapêutica?
Como uma sessão terapêutica afeta
nossa motivação, nossa autoestima, nossa identidade como terapeutas?
Várias são as reflexões que estas
perguntas suscitam. Entre tantas, querermos destacar um aspecto que
consideramos essencial à Terapia Comunitária e também às outras formas de
terapia.
Há uma diferença fundamental
entre uma sessão de terapia que é terapêutica daquela que não o é: a sessão é
terapêutica quando toca o coração das pessoas.
O protagonista sente-se
compreendido, acolhido e aceito. Ele sabe que o terapeuta sintonizou com seu
sofrimento, que o acolheu e compreendeu, que suas preocupações foram levadas a
sério, que o grupo respeitou sua história e se conectou com ela. Este saber é
um saber vivenciado na sessão, tanto pelo protagonista quanto pelos demais
participantes e pelo próprio terapeuta. Há uma conexão de afetos e emoções que
se tornam coletivos e que fazem parte dos sentimentos de todos os seres
humanos. São sentimentos que denominamos "afetos primários", e que
conectam as pessoas e as tornam por isto mesmo humanas.
São estes sentimentos que
buscamos liberar e compreender nas sessões de Terapia Comunitária. Quando
tocamos estes sentimentos, fazemos de nossas sessões verdadeiras trocas de
apoio, afeto, validação. Se não conseguimos tocar os sentimentos, as sessões
serão tecnicamente corretas, mas podem não ter significado duradouro para quem
participa.
Os participantes também se sentem
compreendidos e respeitados, pois encontram na compreensão do terapeuta a
atitude de aceitação que os encoraja a, no futuro, apresentar seus problemas.
Pela conexão que vivenciaram do terapeuta e do grupo com seu sentimento básico,
reconhecem a importância de compartilhar e ter compaixão.
Quais são os afetos primários que
os seres humanos vivenciam?
Amor, desamor, culpa, justiça,
injustiça, ódio, indiferença, confiança, traição, inclusão, exclusão, rejeição,
acolhimento, perda, são alguns destes sentimentos. Nossos afetos primários
provêm basicamente de nossos desejos e nossos temores.
Queremos o amor, tememos o
desamor. Tememos sentir culpa. Buscamos a justiça, rechaçamos a injustiça.
Tememos o ódio e a indiferença. Queremos confiar, tememos ser traídos. Queremos
pertencer, tememos ficar de fora. Queremos ser acolhidos, tememos ser
rejeitados. Tememos perder...
Estes sentimentos são universais,
e é em torno deles que se organizam os temas de nosso viver. Cada um de nós é
afetado mais de perto por alguns destes sentimentos, e nossa vida tem em seu
centro ações e histórias construídas a partir deles.
Vejamos a seguinte queixa:
"Meu pai morreu há 4 meses,
e desde então estou muito mal. Venho resolvendo tudo o que ficou para ser
resolvido. Eu tenho que trabalhar, mas tenho também que resolver os papéis da
aposentadoria dele, os compromissos que ele tinha no serviço, tenho que ver a
pensão da minha mãe, tenho que ajudar com dinheiro. Talvez minha mãe venha
morar comigo, sou eu que tenho que pensar e resolver tudo. Estou cansada, não
aguento mais."
O que esta pessoa está sentindo?
Sobrecarga... impotência...
dificuldade de pedir ajuda... sentimento de que só ela é que pode resolver as
coisas...que ninguém pode fazer algo por ela... Mas o que mais ela está
sentindo? Qual é o sofrimento mais profundo neste momento em que ela está tão
só e tão sobrecarregada? O que está por trás de tudo o que ela relatou, que a
faz sentir-se tão desprotegida?
O sentimento mais fundamental que
ela está vivendo neste momento é o sentimento de orfandade que o ser humano tem
quando perde o pai, não importa em que idade. É o sentimento de nunca mais
poder contar com a proteção do pai. A criança que vive dentro do adulto chora e
lamenta a perda daquele que um dia foi sua proteção e ela teme enfrentar a vida
sozinha.
Este sentimento, que
identificamos como um dos afetos primários, é o que a pessoa está expressando
com sua queixa de sobrecarga. Ela se queixa de sobrecarga, mas também se queixa
da solidão em que se encontra. Ela se queixa de que tem que fazer tudo sozinha,
mas também desabafa indiretamente que não tem mais quem olhe por ela.
O terapeuta, ao tocar as emoções,
conduz a sessão para o mundo dos sentimentos. Em várias sessões, na fase da
contextualização, alguns participantes fazem perguntas por curiosidade. O
protagonista sente-se por vezes incompreendido e incomodado em ter sua história
conduzida para o caminho da história do outro. É papel do terapeuta elaborar
perguntas que direcionem a sessão para os sentimentos básicos, que fazem com
que o participante se sinta compreendido e acolhido.
São estes afetos que procuramos
conhecer e tocar na Terapia Comunitária, para que os participantes possam fazer
contato com eles, emocionar-se e reorganizar suas vivências. Quando os
participantes conectam-se pelos afetos primários, a sessão é vivida de modo
inesquecível.
Lembrando do exemplo da mãe que
traz a queixa de que quis organizar uma UTI para crianças, pois perdeu um filho
por falta de UTI em sua cidade, e se queixa de que as pessoas não se mobilizam
para participar, nos perguntamos quais são os sentimentos que ela vivencia e
expressa através desta queixa?
Poderíamos pensar que ela
expressa a injustiça social, que arrebatou seu filho de seus braços. E
construiríamos um mote baseado em "quem já sofreu a injustiça social que
ocasionou a perda de um ente querido"? E isto é verdadeiro.
Poderíamos pensar que ela se
sente impotente diante de um sistema que não protegeu seu filho quando ele
necessitou. E construiríamos um mote baseado em "quem já viveu o
sentimento de impotência ao querer salvar a quem ama"? E isto também é
verdadeiro.
Mas podemos pensar também que
mais além está o pedido de consolo pela perda do filho que ela nunca poderá ver
crescer. O pedido de que as pessoas a acolham, consolem, tragam alento à maior
dor que uma mãe pode viver. E o mote poderia ser: " Quem já viveu a dor da
perda de um ser amado, e se sentiu sozinho nesta dor?"
Ao atingir esta dor, tocamos um
dos sentimentos mais profundos que vivemos diante da morte e de outras perdas:
a solidão. Pois a dor muitas vezes afasta as pessoas. Muitas são as pessoas que
temem falar da morte e diante da perda, não sabem o que dizer ou o que fazer.
Querem ajudar, mas se sentem impotentes, temem entrar em contato com aquilo que
um dia pode lhes acontecer também...Porém quem perde precisa de um ombro amigo
para chorar e desabafar . Para saber que está acompanhado em sua dor. Para
saber que haverá alguém que o fará levantar se cair. Que haverá alguém ali para
ajudar a secar suas lágrimas.
Se tocarmos esta dor, todas as
pessoas presentes na sessão serão mobilizadas, pois teremos atingido o afeto
primário que sacode a todos os seres humanos diante de uma perda.
Entramos em contato com os afetos
primários pela empatia e pela compaixão. Ao "sentirmos com" o outro,
de forma solidária e receptiva, acolhemos o outro e o aceitamos como ele é, com
aquilo que ele tem. Tocamos a alma do outro, pois nos abrimos para ela sem
crítica ou censura. Pela empatia e pela compaixão, reconhecemos a fragilidade
do outro sem considerá-lo fraco. Reconhecemos que o outro é humano e tem
direito aos sentimentos que tem.
Quando tocamos os afetos
primários construímos bons motes específicos, que tocam a alma, mobilizam
emoção, e fazem com que as pessoas queiram trazer suas experiências e partilhar
as soluções encontradas.
Para trazer à tona os afetos
primários, precisamos fazer boas perguntas, que complementem as perguntas do
grupo. Frequentemente o grupo faz perguntas que visam conhecer a história, o
cotidiano, os fatos, datas, ocorrências, ou seja, perguntas que buscam os
dados. Exemplos destas perguntas são:
"Quando seu pai
morreu?"
"Quantos irmãos você
tem?"
"Onde foi o acidente de seu
pai?"
Com estas perguntas buscam-se os
elementos que precisam ser colhidos para entendermos a história que a pessoa
viveu.Outra forma de colher dados é perguntar sobre o comportamento das
pessoas. Exemplos destas perguntas são:
"O que você faz quando não
está trabalhando?"
"Como sua mãe reagiu à morte
de seu pai?"
"Por que seus irmãos não
ajudam você?"
"Você pede ajuda para seus
irmãos"?
Estas perguntas informam-nos
sobre o contexto, a maneira da pessoa reagir, suas interações.
Uma terceira forma de perguntar
refere-se aos sentimentos que devem ser mobilizados na sessão. Exemplos destas
perguntas são:
"Como você se sente hoje com
tanta coisa para fazer?"
"Como você se sentiria se
seus irmãos pudessem partilhar com você este momento?"
"Quem poderia ajudar você na
sua dor?"
"O que faria você se sentir
melhor neste momento?"
"Quem faria você se sentir
melhor"?
"Como você se sentiria se
pudesse se abrir com alguém em casa"?
"O que aconteceria com sua
mãe se você chorasse com ela?"
"Como seria sua vida se seu
pai estivesse aqui"?
Estas perguntas dirigem-se aos
sentimentos e tocam o coração das pessoas. Elas não se atêm apenas aos
comportamentos, e aprofundam a nossa compreensão. Elas nos levam aos afetos
primários, pois abordam os sentimentos que estão além daquilo que a pessoa
disse. Quando permanecemos no plano do comportamento, a sessão corre o risco de
ficar superficial e nós podemos não encontrar o mote específico para atingir o
centro do problema.
O mote específico que toca o
sentimento de vários participantes sai da generalidade. Permite incluir muitas
pessoas que mesmo não tendo vivido a situação em si, já viveram o sentimento
que ela evoca. Elas se identificam com aquela dor e a terapia se torna então
comunitária, pois passa a incluir o sentimento de todas as pessoas, que de uma
ou outra forma encontram eco nos sentimentos expressados e vivenciados pelo
protagonista. Apesar de ser específico, o mote torna-se abrangente, pois contém
o sentimento de várias pessoas. Por isto é importante reconhecer o afeto
primário envolvido na situação problema. E a melhor forma de reconhecê-lo é
perguntando mais sobre os sentimentos e menos sobre os comportamentos.
Os participantes tendem a buscar
dados sobre o comportamento. O terapeuta irá buscar reflexões sobre o sentimento.
Ambas as formas de perguntar complementam-se, pois compõem a história e incluem
a emoção. O terapeuta pergunta-se: o que esta pessoa diz e o que ela quer
dizer? O mote deve atingir aquilo que ela quer dizer e ainda não conseguiu
traduzir para si mesma.
Assim como o mote deve atingir o
afeto primário, a conotação positiva deve contê-lo, abrindo perspectivas para o
participante. Se a pessoa expressa sua solidão, podemos conotar positivamente
que ela, ao se abrir, já não está sozinha, pois " alegria dividida é
alegria em dobro, e tristeza dividida é meia tristeza."
Já pudemos desta forma valorizar
que ela tenha se aberto, pois desta forma ficará menos só. Basta isto. Quem
perde uma pessoa querida precisa compartilhar esta dor. Quando falamos da dor, podemos
suportá-la melhor. Às vezes só isto basta na sessão. A pessoa não quer
conselhos, não quer que lhe digam "você está fazendo demais e não está
deixando seus irmãos fazerem". Ela sabe que os irmãos não estão em
condição de fazer muita coisa. Ela é capaz de continuar fazendo, só precisa que
a ouçam, que validem sua emoção, sua solidão, e a reconheçam neste sofrimento.
Quando tocamos no tema da morte,
uma forma de conotar positivamente a pessoa é trazer a coragem dela em
enfrentar este tema, e a possibilidade que ela oferece ao grupo de "
reavaliar e valorizar a vida, pois o morrer nos faz pensar sempre no
viver."
Ao conotar deste modo, damos um
sentido àquela perda, e podemos falar da morte sem que as pessoas saiam
desesperançadas. A conotação positiva toca também o afeto primário, e busca sua
resolução. Quem sofreu injustiça pode ter validado o seu " esforço em
lutar pela igualdade entre as pessoas ." Quem sofre rejeição, pode ser
validado por estar " lutando para se incluir, valorizando-se para pertencer
."
No caso da mãe que perdeu seu filho , conotamos sua disposição em
ajudar outras mães, para que elas possam contar com mais ajuda do que ela
contou. Que ela tem o dom de transformar o sofrimento dela em fonte de vida: da
morte ela traz ao outro a possibilidade de viver. Que cada um de nós faz a sua
parte, e ela está fazendo a dela. E que o ombro de todos os presentes está ali
para ela contar e partilhar a saudade do filho querido.
A Terapia Comunitária, ao tocar o
coração das pessoas, possibilita extrair do sofrimento e das situações
difíceis, o crescimento, o aprendizado, o fortalecimento, a oportunidade de se
sair melhor, de beneficiar aos outros com a aprendizagem de cada um.
Ela
fortalece a resiliência, e auxilia as pessoas a elaborarem seus afetos
primários, tocando-os e acolhendo-os, validando cada ser humano em sua
individualidade e em sua capacidade de sair mais forte perante os desafios da
vida. Ganham todos, participantes e terapeutas, que mobilizam suas emoções e se
potencializam na arte de viver.
*Psicóloga Rosana Ferrari
Psicóloga Mariza Bregola de Carvalho
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